A datação do Livro do Profeta Daniel tem sido tema de intenso debate entre estudiosos. Enquanto a crítica histórica e literária moderna, em geral, situa a composição do texto no século II a.C., particularmente durante a crise macabeia, há argumentos internos e externos substanciais que apontam para uma origem mais antiga, possivelmente no século IV a.C. Neste breve artigo apresentaremos uma análise detalhada dessas evidências, confrontando posições acadêmicas divergentes e desenvolvendo uma interpretação que visa uma reavaliação da cronologia tradicional atribuída ao livro.
1. Panorama
O Livro de Daniel se destaca na literatura bíblica por seu estilo híbrido — parte narrativa histórica, parte apocalíptica — e por seu bilinguismo (hebraico e aramaico). A maioria dos estudiosos críticos modernos situa sua redação final no século II a.C., em torno de 167-164 a.C., sob o domínio selêucida e no contexto da perseguição de Antíoco IV Epifânio. Essa posição, no entanto, tem sido desafiada por argumentos internos e externos que sugerem uma composição mais antiga, no século IV a.C., pouco tempo após o fim do exílio babilônico. O objetivo deste artigo é analisar tais argumentos e avaliar sua força diante das evidências disponíveis.
2. Evidências Internas a Favor da Datação no Século IV a.C.
2.1. Conhecimento detalhado da corte babilônica e persa
O autor de Daniel demonstra um conhecimento preciso das estruturas administrativas e culturais da Babilônia e da Pérsia, incluindo títulos oficiais como “chefe dos magos”, “sátrapas” e outros termos administrativos que estavam em uso nos séculos VI e V a.C. Esse conhecimento seria improvável para um judeu vivendo no século II a.C., a menos que tivesse acesso a registros antigos, o que é considerado pouco provável por muitos estudiosos¹. Gleason Archer observa que o uso técnico e apropriado desses termos sustenta uma data anterior, pois um autor do século II provavelmente teria cometido anacronismos².
2.2. Linguagem e estilo literário
O aramaico de Daniel (2:4b–7:28) pertence ao chamado “aramaico imperial”, com traços linguísticos que se ajustam melhor ao período aquemênida do que ao helenístico³. Essa conclusão linguística é reforçada por comparações com os papiros de Elefantina (século V a.C.) e outras inscrições aramaicas contemporâneas. Já o hebraico de Daniel também possui características arcaicas em comparação ao hebraico de livros como Esdras ou Crônicas, cuja composição é posterior⁴.
2.3. Profecias precisas até Alexandre e vagas depois
Outro argumento interno significativo é a precisão detalhada das profecias até Alexandre, mas a ausência de exatidão nas descrições do período dos Ptolemeus e Selêucidas. Se o livro tivesse sido escrito no século II a.C., esperava-se mais precisão histórica nas referências aos acontecimentos macabeus. Como observa Edward J. Young, “as visões são vagas exatamente no ponto onde o autor deveria ter mais clareza se estivesse escrevendo em retrospectiva”⁵.
3. Evidências Externas que Sustentam uma Datação Antiga
3.1. Tradição judaica e canonicidade
A inclusão precoce de Daniel entre os Escritos (Ketuvim) no cânon judaico não é evidência conclusiva, mas aponta para uma tradição de autoria antiga. Josephus (Flávio Josefo), escrevendo no século I d.C., trata Daniel como figura histórica autêntica e suas profecias como bem conhecidas antes do tempo de Antíoco Epifânio⁶. Isso sugere que a obra já tinha sido aceita e circulava amplamente antes do século II.
3.2. Manuscritos de Qumran
Os Manuscritos do Mar Morto, especialmente os fragmentos de Daniel encontrados em Qumran (datados entre 120-100 a.C.), mostram que o livro já era considerado autoritativo e canônico naquele período⁷. Isso implicaria uma composição significativamente anterior para permitir esse reconhecimento e disseminação. É improvável que um texto escrito apenas algumas décadas antes já gozasse de tal status entre os essênios.
3.3. Influência literária sobre outros textos apocalípticos
Há também sinais de que o Livro de Daniel influenciou outros escritos apocalípticos, como 1 Enoque e a literatura de Qumran. Para que tal influência ocorresse, Daniel deveria ter sido composto antes desses textos, o que recua sua data de origem para o século IV ou início do III a.C.⁸
4. Crítica à Datação no Século II a.C.
A principal base da datação crítica tardia é o conceito de “profecia ex eventu” — isto é, uma profecia escrita após os eventos que afirma prever. A crítica vê isso como evidência de que Daniel não é um verdadeiro profeta, mas um pseudônimo usado para encorajar os judeus durante a perseguição de Antíoco IV. Contudo, essa leitura depende de uma pressuposição filosófica naturalista, que exclui a possibilidade de previsão sobrenatural, e não de uma análise imparcial das evidências textuais⁹.
Além disso, os críticos costumam apontar erros históricos no livro, como o “rei Belsazar”, descrito como filho de Nabucodonosor. No entanto, descobertas arqueológicas posteriores, como os cilindros de Nabonido, confirmaram que Belsazar era filho de Nabonido e co-regente na Babilônia — o que confirma o acesso do autor a fontes autênticas e antigas¹⁰.
5. Conclusão
As evidências internas e externas apresentadas neste artigo indicam que o Livro de Daniel possui características que são melhor explicadas por uma datação no século IV a.C. A linguagem, a precisão histórica até Alexandre, o conhecimento da cultura persa e babilônica, além do reconhecimento precoce por parte de comunidades judaicas, apontam para uma composição anterior ao período helenístico tardio. Embora a hipótese de uma redação no século II a.C. continue popular entre os críticos, ela se sustenta mais em pressupostos ideológicos do que em dados empíricos. Uma reavaliação imparcial leva a concluir que a origem do Livro de Daniel remonta, com alta probabilidade, ao século IV a.C., o que fortalece sua credibilidade profética e valor histórico.
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Notas
¹ KITCHEN, Kenneth A. Ancient Orient and Old Testament. Downers Grove: InterVarsity Press, 1966. p. 39-42.
² ARCHER, Gleason L. A Survey of Old Testament Introduction. 3. ed. Chicago: Moody Press, 1994. p. 386-387.
³ FITZMYER, Joseph A. The Aramaic of Daniel in the Light of Old Aramaic. Catholic Biblical Quarterly, Washington, v. 40, n. 1, p. 1–13, 1978.
⁴ WALTKE, Bruce K. The Date of the Book of Daniel. Bibliotheca Sacra, Dallas, v. 133, n. 529, p. 319–329, jan./mar. 1976.
⁵ YOUNG, Edward J. The Prophecy of Daniel: A Commentary. Grand Rapids: Eerdmans, 1949. p. 25-27.
⁶ JOSEPHUS. Antiquities of the Jews. Translated by William Whiston. Book XI, chap. 8, §5. Available in: http://penelope.uchicago.edu/josephus/. Accessed on: 20 Apr. 2025.
⁷ CROSS, Frank Moore. The Ancient Library of Qumran and Modern Biblical Studies. Rev. ed. Garden City, NY: Doubleday, 1961. p. 132-136.
⁸ COLLINS, John J. The Apocalyptic Imagination: An Introduction to Jewish Apocalyptic Literature. 2. ed. Grand Rapids: Eerdmans, 1998. p. 78-81.
⁹ LONGMAN III, Tremper. Daniel. NIV Application Commentary. Grand Rapids: Zondervan, 1999. p. 23-24.
¹⁰ WISEMAN, Donald J. Babylonian Chronology and the Date of Daniel. Tyndale Bulletin, Cambridge, v. 28, p. 1–15, 1977.