A palavra “Evangelho” possui uma relevância central na tradição cristã, constituindo o cerne da proclamação da fé. Mais do que uma simples expressão, o termo abarca dimensões linguísticas, históricas, teológicas e devocionais que merecem ser exploradas em profundidade. Com base em estudos acadêmicos e na tradição patrística, neste artigo investigaremos a origem e o desenvolvimento do termo “evangelho” (do grego euangelion), sua incorporação no vocabulário cristão primitivo e seu significado espiritual para a fé cristã.
1. Etimologia e Uso Pré-Cristão
O termo grego euangelion (εὐαγγέλιον) é formado pela junção do prefixo eu- (bom) e angelia (mensagem, anúncio), significando literalmente “boa notícia” ou “boa nova”¹. Na Antiguidade greco-romana, o termo era usado para designar o anúncio de eventos de grande importância, como o nascimento de um imperador ou uma vitória militar. O historiador romano Suetônio, por exemplo, relata que o nascimento de César Augusto foi saudado como euangelion, um sinal da chegada de uma nova era². Nesse contexto, o termo era carregado de conotações políticas e imperiais.
2. O Uso no Judaísmo Helenístico
No contexto judaico helenístico, especialmente na Septuaginta (tradução grega do Antigo Testamento), euangelion aparece em passagens como Isaías 52:7: “Quão formosos são, sobre os montes, os pés do que anuncia boas novas...” (ho euangelizomenos agatha). Aqui, o termo é utilizado com referência à salvação de Israel e ao reinado de Deus. Segundo N.T. Wright, essa aplicação escatológica e teocêntrica serviu de ponte para a apropriação cristã do termo³.
3. A Incorporação no Cristianismo Primitivo
Os primeiros cristãos, particularmente os autores dos Evangelhos e Paulo de Tarso, reinterpretaram euangelion à luz da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Para Paulo, o evangelho não é apenas uma mensagem de boas novas, mas o próprio poder de Deus para a salvação (Rm 1:16). Neste sentido, euangelion passou a designar não apenas uma informação, mas uma realidade performativa: a presença do Reino de Deus em Jesus Cristo⁴.
O uso de euangelion em Marcos 1:1 (“Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”) inaugura um gênero literário novo — o “Evangelho” — cuja função é apresentar a pessoa e obra de Cristo como a boa nova definitiva para a humanidade. George Eldon Ladd destaca que, para o cristianismo primitivo, o evangelho era inseparável da realidade do Reino de Deus que irrompe na história através da pessoa de Jesus⁵.
4. Desenvolvimento Teológico e Patrístico
A teologia cristã rapidamente incorporou o conceito de evangelho como núcleo da fé. Agostinho de Hipona via o evangelho como “a graça de Deus manifestada em Cristo”, e a tradição patrística o associava à proclamação apostólica, fixada nas Escrituras e vivificada pelo Espírito Santo⁶.
A teologia reformada, séculos depois, retomaria esse foco na centralidade do evangelho, enfatizando a justificação pela fé como seu núcleo essencial (Lutero) e o pacto da graça como sua moldura histórica (Calvino). Robert H. Gundry, ao analisar a teologia dos Evangelhos, argumenta que o evangelho representa não apenas uma doutrina, mas a história redentora centrada na encarnação, paixão e vitória de Cristo⁷.
5. O Significado Devocional
No plano devocional, o evangelho é mais do que um conceito: é uma realidade já presente que transforma a vida. O cristão, ao encontrar-se com o evangelho, encontra-se com o próprio Senhor Jesus. A palavra se torna sacramento — um sinal eficaz da graça. A leitura, meditação e proclamação do evangelho tornam-se, assim, atos de encontro com o Deus vivo.
Neste sentido, a espiritualidade cristã gira em torno da escuta do evangelho como Palavra viva, que desafia, cura, liberta e envia. A mensagem do evangelho não é estática, mas viva e penetrante, convocando o fiel a um discipulado ativo e transformador, como expressão da nova criação que já se manifesta em Cristo.
Conclusão
Do contexto político e cultural do mundo greco-romano, passando pela expectativa escatológica judaica e culminando na proclamação cristã da obra do SenhorJesus, a palavra evangelho sofreu uma profunda transformação semântica e teológica. Tornou-se o coração da fé cristã — um termo que não apenas anuncia, mas atua. Em sua dimensão devocional, o evangelho não é apenas algo a ser crido, mas algo a ser vivido, pois é a própria vida de Deus oferecida ao mundo.
A redescoberta constante do evangelho ao longo da história — nos pais da Igreja, na Reforma, e nas teologias contemporâneas — mostra que seu poder não está em sua forma, mas em sua substância: Jesus Cristo, a Boa Nova de Deus para a humanidade.
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Notas e Referências
1. LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Oxford: Clarendon Press, 1996. p. 776.
2. SUETÔNIO. A Vida dos Doze Césares. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2012. p. 45.
3. WRIGHT, N. T. Como Deus se tornou rei: a história esquecida dos evangelhos. São Paulo: Thomas Nelson Brasil, 2014. p. 58.
4. DUNN, James D. G. A Teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003. p. 62.
5. LADD, George Eldon. The Gospel of the Kingdom: Scriptural Studies in the Kingdom of God. Grand Rapids: Eerdmans, 1959. p. 114.
6. AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Tradução de Márcia Valéria Zouain. São Paulo: Paulus, 1999. p. 521.
7. GUNDRY, Robert H. A Survey of the New Testament. 5. ed. Grand Rapids: Zondervan, 2012. p. 104.