O Censo de Lucas, Quirino e o Governo Colegiado: Uma Análise Histórica

  



O relato do Evangelho de Lucas 2:1-2, ao mencionar um recenseamento decretado por César Augusto “quando Quirino governava a Síria”, é um dos pontos mais debatidos na historiografia do Novo Testamento. A aparente contradição entre o registro lucano e as fontes históricas conhecidas – especialmente Flávio Josefo – motivou críticas à confiabilidade do evangelista. O problema central reside no fato de que Quirino é atestado como legado da Síria somente em 6 d.C., enquanto o nascimento de Jesus, segundo o próprio Lucas e Mateus, ocorre durante o reinado de Herodes, morto em 4 a.C. Neste artigo proporemos uma defesa da plausibilidade histórica do relato de Lucas, analisando evidências epigráficas e administrativas que apontam para uma atuação colegiada de Públio Sulpício Quirino na Síria por volta de 4 a.C., em conjunto com Públio Quintílio Varo. Além disso, discutiremos o contexto dos censos no Império Romano sob Augusto, a prática administrativa e as implicações para a historicidade do texto lucano.

1. O Contexto do Problema Cronológico

O Evangelho de Lucas situa o nascimento de Jesus durante um censo realizado sob Augusto e vincula este evento à administração de Quirino na Síria. Historicamente, sabemos que:

Augusto promoveu três grandes censos em Roma (28 a.C., 8 a.C., 14 d.C.) e vários regionais nas províncias [1].

Quirino é mencionado por Josefo como responsável por um censo na Judeia em 6 d.C., após a deposição de Arquelau [2].

Herodes, no entanto, morre em 4 a.C., estabelecendo um hiato temporal entre os eventos.

Essa lacuna levou críticos a acusarem Lucas de anacronismo. Entretanto, a questão é mais complexa: há indícios arqueológicos e epigráficos de que Quirino exerceu funções especiais no Oriente antes de 6 d.C.

2. A Evidência Epigráfica: ILS 9502 e o Conceito de Governo Colegiado

A inscrição Inscriptiones Latinae Selectae 9502 (ILS 9502), descoberta por Sir William M. Ramsay, renomado historiador e arqueólogo, apresenta Quirino como detentor do título de Duumvir, indicando a prática colegiada de governo [3]. Essa inscrição demonstra que Quirino exerceu cargo com autoridade partilhada, o que, no contexto provincial, implica uma função extraordinária, possivelmente ligada a assuntos militares e administrativos.

Sir William Ramsay argumentou que, durante a crise sucessória após a morte de Herodes O Grande, a Síria enfrentava tensões que demandavam dupla autoridade: Varo, como legado oficial, teria mantido as atribuições civis, enquanto Quirino exercia competências militares e administrativas específicas, incluindo o recenseamento [4]. Esta hipótese é reforçada pelo uso do termo grego ἡγεμονεύοντος (hēgemonéuontos), empregado por Lucas, que denota função governativa, não necessariamente no sentido técnico de “legado provincial”.

3. Lapis Tiburtinus e a Hipótese do Duplo Governo

Outra peça epigráfica, o Lapis Tiburtinus, menciona um oficial que governou a Síria duas vezes, embora o nome esteja ausente [5]. Muitos estudiosos sugerem tratar-se de Quirino, considerando suas atividades documentadas no Oriente, inclusive sua campanha contra os homonadeus na Cilícia, datada próximo a 8–4 a.C. [6]. A atuação militar e o prestígio de Quirino sob Augusto tornam plausível que ele tenha recebido autoridade excepcional na Síria, reforçando o cenário descrito por Lucas.

4. Censos sob Augusto: Frequência e Duração

Os censos não eram eventos pontuais, mas processos prolongados, frequentemente adaptados às condições locais [7]. Augusto institucionalizou o recenseamento como base da tributação e do controle populacional, fato atestado em suas Res Gestae. Na prática, tais levantamentos podiam levar anos para se concluir em regiões distantes, como a Judeia, especialmente em contextos de transição política. Essa realidade histórica converge com a narrativa lucana, que associa o recenseamento à migração familiar para a cidade de origem – uma prática condizente com adaptações judaicas, embora não comum nas províncias romanizadas.

5. Testemunhos de Flávio Josefo sobre Quirino e o Censo

Flávio Josefo fornece dados fundamentais para a compreensão do papel de Quirino:

Em Antiguidades Judaicas XVIII, 1-2, ele relata que Quirino chegou à Síria como legado imperial para administrar o censo da Judeia:

  “Quirino, homem do Senado, que havia alcançado a honra do consulado e em todos os aspectos era uma pessoa de distinção, foi enviado por César como legado à Síria e Judeia para avaliar os bens dos judeus e vender os bens de Arquelau” [2].

Esse testemunho confirma a autoridade de Quirino em 6 d.C., mas não exclui sua possível atuação anterior no Oriente, considerando suas funções militares anteriores e a menção epigráfica que sugere cargos cumulativos ou colegiados. Josefo também confirma a prática dos censos como instrumento político e fiscal romano, provocando a revolta de Judas, o Galileu, exatamente por sua execução na Judeia.

6. Análise Crítica e Convergência das Fontes

Os críticos modernos, como Schürer, consideraram o relato lucano uma tentativa teológica de harmonizar Jesus com a profecia de Miquéias 5:2 [8]. Entretanto, achados epigráficos e interpretações recentes apontam para a possibilidade de Lucas basear-se em memória histórica concreta, embora sintetizada de modo narrativo. O argumento de Ramsay permanece robusto: um cargo colegiado entre Quirino e Varo explicaria a referência lucana sem contradizer as fontes de Josefo. Além disso, a própria prática romana de missões extraordinárias legitima a hipótese. Em crises, Augusto frequentemente designava enviados especiais com autoridade limitada, sem destituir os governadores titulares. Isso contextualiza o duplo governo e a competência de Quirino sobre o recenseamento, sem exigir que ele fosse legado oficial em 4 a.C.

Conclusão

Embora não possuamos provas diretas e incontestáveis, a soma das evidências epigráficas (ILS 9502, Lapis Tiburtinus), a política administrativa augustana e os testemunhos antigos reforçam a plausibilidade do relato lucano. O evangelista não erra, mas registra um evento enraizado na realidade histórica: um censo decretado por Augusto, executado sob supervisão de Quirino, que, em conjunto com Varo, detinha autoridade na Síria por volta de 4 a.C. Assim, a narrativa de Lucas se mostra coerente com a dinâmica administrativa do Império Romano e com as evidências arqueológicas, mesmo diante da complexidade cronológica.

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Referências

[1] SHERWIN-WHITE, A. N. Roman Society and Roman Law in the New Testament. Oxford: Clarendon Press, 1963.

[2] JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas. Livro XVIII, 1-2.

[3] RAMSAY, William. M. Was Christ Born at Bethlehem? A Study on the Credibility of St. Luke. London: Hodder & Stoughton, 1898.

[4] MOMMSEN, T. The Provinces of the Roman Empire. London: Macmillan, 1886.

[5] DESSAU, H. Inscriptiones Latinae Selectae. Berlim: Weidmann, 1892. nº 9502.

[6] SYME, R. The Roman Revolution. Oxford: Oxford University Press, 1939.

[7] MILLAR, F. The Roman Near East 31 BC–AD 337. Harvard: Harvard University Press, 1993.

[8] SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ. Edinburgh: T&T Clark, 1891.





DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Novo Testamento e Origens Cristãs pelo Seminário Bíblico de São Paulo/SP (FETSB); Mestre (M.A.) em Teologia e Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG). É teólogo, biblista, historiador e apologista cristão evangélico.

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