O estudo da Palestina do século I, período correspondente à vida de Jesus de Nazaré, exige uma abordagem histórica e sociológica que vá além da leitura puramente religiosa dos textos neotestamentários. Trata-se de um contexto marcado por dominação imperial romana, desigualdade econômica e pluralismo religioso, fatores que influenciaram tanto as práticas sociais quanto as formulações teológicas. Como aponta E. P. Sanders, “entender Jesus sem seu contexto é criar uma figura anacrônica e descolada da realidade histórica” [1]. A análise do mundo social palestinense é, portanto, indispensável para compreender não apenas as condições de vida da população, mas também a gênese da mensagem de Jesus.
1. Estrutura Política e Dinâmica Econômica
Após a incorporação da Palestina ao Império Romano em 63 a.C., a região passou por intensas transformações administrativas. A morte de Herodes, o Grande, em 4 a.C., dividiu o território entre seus filhos, mas, em 6 d.C., a Judeia foi submetida ao controle direto de Roma, administrada por procuradores como Pôncio Pilatos [2]. Essa configuração política implicava pesadas cargas tributárias e exploração econômica: segundo Richard Horsley, “o sistema tributário romano-herodiano sugava recursos da agricultura camponesa, deixando uma massa de pequenos proprietários endividados” [3]. A economia era essencialmente agrária, baseada na produção de grãos, azeite e vinho, com pesca relevante na Galileia. Contudo, a concentração fundiária nas mãos de elites urbanas e sacerdotais intensificava a marginalização camponesa. Estudos sugerem que a carga tributária podia atingir entre 30% e 50% da produção agrícola, além de taxas adicionais sobre transações comerciais [4]. Esse cenário gerou um processo de proletarização camponesa, no qual muitos perderam suas terras, tornando-se arrendatários ou trabalhadores eventuais. Além da agricultura, cidades como Séforis e Tiberíades, fundadas sob influência helenística, constituíam centros administrativos e culturais que intensificavam a penetração da cultura greco-romana, criando um ambiente de tensão entre helenização e preservação da identidade judaica [5].
2. Estratificação Social e Padrões de Exclusão
A sociedade palestinense do século I era rigidamente hierarquizada. No topo estavam as elites sacerdotais e aristocráticas, ligadas ao Templo e ao poder romano. Em posição intermediária situavam-se comerciantes e cobradores de impostos (publicanos), frequentemente vistos como traidores pela população [6]. A base social era formada por camponeses, pescadores e artesãos, enquanto mendigos, leprosos e pessoas consideradas ritualmente impuras ocupavam os estratos mais baixos, sofrendo exclusão religiosa e social. John Dominic Crossan observa que a ordem social palestinense era orientada por um “código de honra e vergonha” que permeava todas as interações [7]. Nesse sistema, status social era mais determinante que riqueza material, e a manutenção da honra familiar era central para a identidade coletiva. Esse padrão reforçava a estabilidade das elites, mas também alimentava tensões quando grupos marginalizados buscavam novas formas de reconhecimento.
3. Organização Familiar e Vida Cotidiana
A unidade básica da sociedade era a família extensa, estruturada em torno de um patriarca. A economia doméstica envolvia todos os membros, que colaboravam na produção agrícola ou artesanal. Segundo Geza Vermes, “a vida girava em torno da aldeia, da família e da sinagoga, que se constituía não apenas como espaço de culto, mas como núcleo de coesão comunitária” [8]. A sinagoga tinha múltiplas funções: local de oração, ensino da Torá e discussões comunitárias. Embora o Templo de Jerusalém permanecesse como centro religioso supremo, as sinagogas garantiam a vida religiosa cotidiana, especialmente nas aldeias da Galileia. O cotidiano era marcado por uma dieta simples (pão, azeite, vinho, frutas), trabalho extenuante e festas religiosas, como a Páscoa e as Festas dos Tabernáculos, que reforçavam a identidade nacional e a memória de libertação.
4. Pluralidade Religiosa e Tensões Ideológicas
O judaísmo do período do Segundo Templo era tudo, menos uniforme. Fariseus, saduceus, essênios e zelotes representavam diferentes respostas à crise identitária sob domínio estrangeiro. Os fariseus enfatizavam a Lei oral e a santidade cotidiana; os saduceus, ligados à aristocracia sacerdotal, rejeitavam a ressurreição e colaboravam com Roma; os essênios, como demonstram os Manuscritos do Mar Morto, pregavam um separatismo rigoroso e uma expectativa escatológica; os zelotes, por sua vez, promoviam resistência armada [9]. Esse ambiente religioso fragmentado refletia a busca por soluções para a crise nacional. Paula Fredriksen afirma que “a multiplicidade de respostas judaicas ao domínio romano revela um momento de intensa efervescência escatológica” [10]. O plurilinguismo reforçava essa diversidade: aramaico era a língua vernácular; hebraico, usado no culto sinagogal; grego, na administração e comércio; latim, restrito à elite militar romana.
5. Conflitos Sociais e Movimentos de Resistência
A tensão entre Roma, elites locais e camponeses se manifestava em rebeliões periódicas. A revolta liderada por Judas, o Galileu, em 6 d.C., contra o censo romano, é um exemplo de resistência fiscal e nacionalista [11]. Além disso, banditismo rural e profetismo carismático expressavam insatisfação popular. Richard Horsley argumenta que Jesus deve ser compreendido como parte desse universo de contestação simbólica, ainda que sua proposta fosse distinta: “em vez da violência zelota, Jesus propunha um reino alternativo baseado em justiça distributiva e reciprocidade” [12].
6. Implicações para a Mensagem de Jesus
A mensagem de Jesus deve ser lida à luz desse contexto. Seu anúncio do “Reino de Deus” confrontava tanto a ordem imperial quanto as estruturas religiosas exclusivistas. Ao proclamar bem-aventuranças aos pobres (Lc 6:20) e denunciar a hipocrisia das elites (Mt 23), Jesus subvertia a lógica de honra e poder vigente [13]. Crossan vê em Jesus “um programa de inversão social” que redefinia status, colocando os marginalizados no centro da comunidade [14]. Essa proposta tinha implicações econômicas, como indica a ênfase no perdão das dívidas (Mt 6:12), um tema vital para camponeses endividados.
Considerações Finais
Portanto segundo análises históricas a Palestina do século I apresentava um quadro de complexidade social, marcado por domínio romano, desigualdade estrutural e pluralismo religioso. Nesse cenário emergem movimentos que variam do separatismo ascético à resistência armada. A mensagem de Jesus se insere como resposta alternativa: não uma revolta violenta, mas um projeto simbólico de transformação social, religiosa e espiritual, centrado na inclusão, na justiça e na pregação espiritual do Reino de Deus. Como conclui Sanders, “compreender Jesus é compreender o judaísmo e a sociedade do seu tempo” [15]. Ignorar essa base histórica é perder de vista a radicalidade de sua proposta.
________________________
Referências
[1] SANDERS, E. P. Jesus and Judaism. London: SCM Press, 1985.
[2] GOODMAN, M. Rome and Jerusalem: The Clash of Ancient Civilizations. London: Penguin, 2007.
[3] HORSLEY, R. A. Jesus and the Spiral of Violence. Minneapolis: Fortress Press, 1993.
[4] FIENSY, D. The Social History of Palestine in the Herodian Period. Lewiston: Edwin Mellen Press, 1991.
[5] LEVINE, L. I. Jerusalem: Portrait of the City in the Second Temple Period. Philadelphia: Jewish Publication Society, 2002.
[6] OAKMAN, D. E. Jesus and the Economic Questions of His Day. Lewiston: Edwin Mellen, 1986.
[7] CROSSAN, J. D. The Historical Jesus: The Life of a Mediterranean Jewish Peasant. New York: HarperCollins, 1991.
[8] VERMES, G. Jesus the Jew. London: Collins, 1973.
[9] VANDERKAM, J. The Dead Sea Scrolls Today. Grand Rapids: Eerdmans, 1994.
[10] FREDRIKSEN, P. Jesus of Nazareth, King of the Jews. New York: Vintage, 1999.
[11] GOODMAN, M., op. cit.
[12] HORSLEY, R. A., op. cit.
[13] EVANS, Craig. A. Jesus and His Contemporaries. Leiden: Brill, 1995.
[14] CROSSAN, J. D., op. cit.
[15] SANDERS, E. P., op. cit.