A obra Antiguidades Judaicas, escrita por Flávio Josefo por volta do ano 93 d.C., representa uma das fontes extrabíblicas mais discutidas a respeito de Jesus de Nazaré. Josefo, um fariseu de origem sacerdotal que viveu entre 37 e 100 d.C., escreveu extensivamente sobre a história judaica, oferecendo aos leitores modernos uma visão do contexto social, político e religioso do judaísmo do Segundo Templo. No entanto, duas passagens específicas de sua obra — amplamente conhecidas como o Testimonium Flavianum e a referência a Tiago — geraram intensos debates acadêmicos quanto à sua autenticidade, originalidade e implicações históricas.
1. O Testimonium Flavianum: Tradição Grega versus Versão Árabe
O Testimonium Flavianum, encontrado no Livro 18, capítulo 3, seção 3 de Antiguidades Judaicas, constitui a mais célebre menção a Jesus fora dos textos cristãos. A versão tradicional preservada em manuscritos gregos medievais afirma, entre outras coisas, que Jesus “era o Cristo” e que “apareceu a eles no terceiro dia, novamente vivo”. Tais expressões são altamente problemáticas para os estudiosos modernos, uma vez que implicam um endosso cristológico por parte de um autor judeu não convertido, o que seria, no mínimo, improvável.
Segundo John P. Meier, a passagem “parece ter sido editada por mãos cristãs posteriores, embora um núcleo josefiano original seja perfeitamente possível”[1]. Da mesma forma, Geza Vermes argumenta que “a linguagem messiânica da versão tradicional é anacrônica e reflete uma teologia que Josefo jamais teria usado”[2]. A maioria dos estudiosos, portanto, adota a hipótese de que o Testimonium sofreu interpolações cristãs, possivelmente a partir do século IV.
Nesse contexto, uma versão alternativa da passagem, preservada em árabe por Agápio de Hierápolis (século X), tem recebido crescente atenção. Essa versão afirma:
- “Neste tempo havia um homem sábio chamado Jesus. Sua conduta era boa, e ele era conhecido por ser virtuoso. (...) Pilatos o condenou à crucificação e à morte. Mas aqueles que tinham se tornado seus discípulos não abandonaram seu discipulado. Eles relataram que ele lhes havia aparecido três dias após sua crucificação e que ele estava vivo; consequentemente, ele talvez fosse o Messias...”[3]
Tal formulação é vista como mais compatível com a perspectiva de um historiador judeu, pois descreve os eventos do ponto de vista dos discípulos de Jesus, sem endossar teologicamente suas crenças. Louis Feldman observa que “a versão árabe pode representar uma tradição mais autêntica do que os manuscritos gregos disponíveis, os quais passaram por mãos cristãs”[4].
2. A Referência a Tiago, Irmão de Jesus
A segunda citação, encontrada em Antiguidades Judaicas 20.9.1, é considerada amplamente autêntica, mesmo entre estudiosos céticos. Nela, Josefo relata a execução de Tiago, “irmão de Jesus, que é chamado Cristo”, pelo sumo sacerdote Anano.
- "Mas o jovem Anano, que, como dissemos, recebeu o sumo sacerdócio, era de um temperamento audacioso e ousado. Ele convocou o Sinédrio e trouxe perante ele o irmão de Jesus, que é chamado Cristo, cujo nome era Tiago, e alguns outros, acusando-os de transgredirem a lei, e os entregou para serem apedrejados."[7]
Essa menção é significativa por duas razões: primeiro, ela se refere a Jesus de forma incidental, como uma figura já conhecida do leitor; segundo, usa o termo “chamado Cristo”, o que denota uma distinção social ou religiosa, mas não necessariamente adesão pessoal à crença messiânica.
Paula Fredriksen argumenta que “essa referência é especialmente valiosa, pois é uma citação neutra, típica do estilo de Josefo, e provavelmente escapou às interpolações porque não apresenta implicações cristológicas diretas”[5]. Bart Ehrman acrescenta que “a autenticidade desta passagem é quase universalmente aceita, inclusive entre estudiosos não cristãos”[6].
3. Implicações Históricas
As passagens de Josefo são de inegável valor historiográfico, especialmente num cenário em que as fontes contemporâneas a Jesus são escassas. Ainda que o Testimonium Flavianum contenha elementos espúrios, sua provável base original sugere que Josefo tinha algum conhecimento sobre Jesus e seu movimento. Já a referência a Tiago consolida a existência de Jesus como uma figura histórica que teve seguidores e impacto suficiente para ser mencionada por um historiador judeu que escrevia sob patrocínio romano.
Porém, é fundamental ressaltar que Josefo não era um defensor do cristianismo, nem mesmo um simpatizante. Suas menções são econômicas e contextuais, o que confere às citações um tom de neutralidade rara para uma época em que as disputas religiosas eram intensas. Isso, paradoxalmente, reforça o valor histórico dos testemunhos josefinos, justamente por sua distância teológica das afirmações cristãs.
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Notas e Referências
1. MEIER, John P. Um Judeu Marginal: Repensando O Jesus Histórico. Vol. 1. São Paulo: Imago, 1994. p. 61-63.
2. VERMES, Geza. Jesus, O Judeu: Uma Leitura Histórica dos Evangelhos. São Paulo: Imago, 1983. p. 23.
3. PINES, Shlomo. An Arabic Version of the Testimonium Flavianum and Its Implications. Jerusalem: Israel Academy of Sciences and Humanities, 1971. p. 15-17.
4. FELDMAN, Louis H. Josephus and Modern Scholarship (1937–1980). Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1984. p. 684.
5. FREDRIKSEN, Paula. Jesus of Nazareth, King of the Jews: A Jewish Life and the Emergence of Christianity. New York: Vintage Books, 2000. p. 56-58.
6. EHRMAN, Bart D. Did Jesus Exist? The Historical Argument for Jesus of Nazareth. New York: HarperOne, 2012. p. 60-63.
7. JOSEFO, Flávio. História dos Judeus: Antiguidades Judaicas. Livro XX, capítulo 9, parágrafo 1. Tradução de Vicente Pedroso. São Paulo: Editora das Américas, 1958. p. 614.