Tácito e Jesus: O Que Diz a Fonte Romana Mais Confiável Sobre o Cristo Histórico?


       

Tácito e Jesus: O Que Diz a Fonte Romana Mais Confiável Sobre o Cristo Histórico?


A figura histórica de Jesus de Nazaré aparece esparsamente nas fontes não cristãs do primeiro e segundo séculos. Entre essas raras menções, a passagem de Públius Cornelius Tácitus, registrada em seus Anais (15.44), é amplamente considerada uma das referências mais importantes, precisamente por sua origem romana, sua natureza aparentemente independente da tradição cristã e por ter sido escrita por um historiador de renome. Neste breve artigo analisaremos detalhadamente essa passagem, explorando a possibilidade de Tácito ter usado fontes romanas oficiais, e discutir a natureza historiográfica dos Anais, com base em diálogo crítico com estudiosos modernos.

1. A passagem de Tácito nos Anais

No livro 15, capítulo 44 dos Anais, Tácito relata a repressão aos cristãos após o incêndio de Roma em 64 d.C.:

  - "Nero lançou a culpa [do incêndio] e infligiu as mais refinadas torturas a uma classe odiada por suas abominações, chamados de cristãos pelo povo. Cristo, de quem o nome deriva, sofreu a pena máxima durante o reinado de Tibério, nas mãos de um dos nossos procuradores, Pôncio Pilatos." (Annales 15.44)

Essa referência é notável por confirmar, de forma independente, três elementos cruciais da narrativa cristã: a existência de Jesus ("Cristo"), sua execução por Pilatos, e o contexto temporal do governo de Tibério. A maioria dos estudiosos, como Van Voorst [1] e Meier [2], considera essa passagem autêntica e não fruto de interpolação cristã posterior, como se discute no caso de Flávio Josefo.

2. Fontes e metodologia de Tácito

Tácito, senador romano e procônsul da Ásia, dispunha de acesso privilegiado aos Acta Senatus (Registros do Senado) e aos Acta Diurna Populi Romani (Diários Oficiais da Administração), como apontado por Syme [3], um dos principais especialistas em sua obra. Além disso, Tácito menciona repetidamente seu uso de fontes oficiais e testemunhos orais para reconstruir eventos passados.

A menção a Pilatos é particularmente significativa nesse contexto. Como procurador/prefeito da Judeia sob Tibério, Pilatos seria uma figura presente nos arquivos administrativos. Gerd Theissen e Annette Merz [4] sugerem que a informação sobre a execução de Jesus poderia ter sido obtida de tais documentos, ou de relatos circulantes em Roma sobre os cristãos, que já eram um grupo visado até mesmo antes de Nero.

3. A historiografia dos Anais

Os Anais têm como objetivo narrar a história do principado desde a morte de Augusto. Dividida em forma analítica e cronológica, a obra cobre os reinados de Tibério, Cláudio e Nero, embora parte do material esteja perdido. O estilo de Tácito é marcado pelo pessimismo moral e críticas veladas (e por vezes abertas) ao despotismo imperial, especialmente ao de Nero. Como observa Ronald Mellor [5], Tácito não é apenas um cronista, mas um moralista que busca extrair lições éticas e políticas do passado. Assim, seu retrato dos cristãos como "odiados por suas abominações" revela mais sobre a percepção romana da seita do que sobre suas crenças intrínsecas.

4. Originalidade e independência da fonte

Tácito demonstra claro desprezo pelos cristãos, o que reforça a ideia de que ele não se baseou em fontes cristãs. Como afirma Bart Ehrman [6], a hostilidade de Tácito à seita torna improvável qualquer dependência de tradições cristãs ou simpatizantes. Sua referência à "pena máxima" (crucificação) e ao governo de Tibério está alinhada com o que se esperaria de um historiador com acesso a dados administrativos.

Conclusão

A passagem de Tácito nos Anais é uma das fontes não cristãs mais valiosas para o estudo histórico de Jesus de Nazaré. Sua autenticidade é amplamente aceita, e a natureza do texto sugere uma base documental romana, possivelmente oriunda de arquivos imperiais. Sua importância reside não apenas na confirmação de elementos fundamentais da narrativa cristã, mas também no testemunho da hostilidade romana inicial ao cristianismo. Assim, Tácito não apenas nos informa sobre um evento histórico, mas também nos oferece uma janela para a recepção de Jesus e de seus seguidores no mundo romano do século I.

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Notas e Referências

[1] VAN VOORST, Robert E. Jesus Outside The New Testament: An Introduction To The Ancient Evidence. Grand Rapids: Eerdmans, 2000. p. 42-45.

[2] MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking The Historical Jesus. Volume 1. New York: Doubleday, 1991. p. 90-93.

[3] SYME, Ronald. Tacitus. Oxford: Oxford University Press, 1958. p. 281-285.

[4] THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. The Historical Jesus: a Comprehensive Guide. Minneapolis: Fortress Press, 1998. p. 74-77.

[5] MELLOR, Ronald. Tacitus: The Classical Heritage. New York: Routledge, 1995. p. 103-106.

[6] EHRMAN, Bart D. Did Jesus Exist? The Historical Argument for Jesus of Nazareth. New York: HarperOne, 2012. p. 55-59.




DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Novo Testamento e Origens Cristãs pelo Seminário Bíblico de São Paulo/SP (FETSB); Mestre (M.A.) em Teologia e Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG). É teólogo, biblista, historiador e apologista cristão evangélico.

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