Isaías 52:13–53:12, conhecido como o quarto "Cântico do Servo", permanece uma das passagens mais debatidas da literatura profética hebraica. Seu impacto é notório tanto na teologia judaica quanto cristã, pois descreve um "Servo" que sofre injustamente, levando sobre si as culpas de outros. Neste breve artigo argumentaremos que, à luz das evidências internas do texto hebraico e do desenvolvimento histórico das interpretações, a passagem apresenta um sujeito individual que sofre vicariamente pelos pecados do povo de Israel, antecipando um papel messiânico. Nossa abordagem envolverá: (1) análise exegética interna; (2) avaliação histórica das interpretações judaicas antigas (incluindo tradições pré-cristãs e targúmicas); (3) diálogo com posições acadêmicas modernas; e (4) elaboração de uma síntese conclusiva.
1. Estrutura Literária e Contexto
Isaías 53 está inserido nos capítulos 40–66 do livro do profeta Isaías. A tradição histórica judaica e cristã sustenta que todo o livro foi composto por Isaías ben Amoz no século VIII a.C., em contexto anterior ao exílio babilônico. A hipótese de um “Deutero-Isaías” (segundo Isaías), amplamente divulgada pela crítica bíblica moderna, sustenta que capítulos 40–55 seriam de um autor posterior, exílico ou pós-exílico. Contudo, essa teoria é fruto da alta crítica alemã que possuí raizes no advento iluminista do século 18, não refletindo evidências internas do texto nem tradições antigas, mas baseando-se em pressupostos racionalistas. Diversos estudiosos conservadores destacam que não há prova documental que justifique uma fragmentação autoral e que as marcas literárias do texto apontam para uma unidade orgânica do livro de Isaías [1]. Apesar dessa controvérsia, é consensual que Isaías 52:13–53:12 se apresenta como um cântico estruturado poeticamente, com pronomes singulares e ações individuais contrastando com o coletivo. Essa distinção é central para a interpretação messiânica do texto.
2. Análise Exegética do Texto Hebraico
2.1. Distinção entre o Servo e Israel
Isaías 53:8 declara:
- מִפֶּשַׁע עַמִּי נֶגַע לָמוֹ
“Por causa da transgressão do meu povo, ele foi ferido.”
O pronome singular “ele” (lamo) é contrastado com “meu povo” (עַמִּי), que no contexto se refere a Israel. Isso estabelece uma distinção categórica: o Servo não é idêntico à coletividade israelita. Como observa Motyer:
“Israel não pode sofrer pelas transgressões de Israel. O Servo está fora do povo, mas age em favor dele”[2].
2.2. Terminologia Sacrificial
נָשָׂא (nasaʾ) – “levar, carregar” (Is 53:4, 12) indica carregar culpa, linguagem típica do bode expiatório (Lv 16:22).
סָבַל (saval) – “suportar” (Is 53:11) reforça o aspecto penal vicário.
אָשָׁם (asham) – “oferta pela culpa” (Is 53:10) é termo técnico levítico (Lv 5:15–16). A vida do Servo é explicitamente equiparada a um sacrifício expiatório, algo impossível de aplicar ao coletivo Israel, já que Israel oferece, mas não é, por essência, a oferta.
Christopher Wright comenta:
“A linguagem cultual não é metafórica, mas jurídica e sacrificial. O Servo se torna a ‘oferta pelo pecado’ de Isaías”[3].
2.3. Individualidade e Morte do Servo
O texto declara que o Servo é “cortado da terra dos viventes” (נִגְזַר מֵאֶרֶץ חַיִּים, Is 53:8) e “pôs a sua sepultura com os ímpios” (Is 53:9). Israel como povo nunca deixou de existir; a morte literal aqui reforça um sujeito pessoal. Alec Motyer observa:
“A imagem da sepultura é inescapavelmente individual, sugerindo não apenas sofrimento, mas morte violenta e isolada”[4].
3. Interpretações Judaicas Antigas: Pré-Cristo e Targumim
Contrariando a afirmação moderna de que a leitura messiânica seria cristã, existem indícios em tradições judaicas pré-cristãs que viam Isaías 53 como referência ao Messias:
Targum de Isaías 52:13 (redigido após Cristo, mas preservando tradições orais anteriores):
“Eis que meu servo, o Messias, prosperará...”
(Targum Jonatan).
Essa tradição sugere que círculos judaicos já vinculavam o “Servo” ao Rei Messias.
Midrashim posteriores também identificam o Servo com o Messias, embora essa leitura tenha sido ofuscada pelo judaísmo rabínico medieval, que reinterpretou o texto em chave coletiva, em reação à exegese cristã.
3.1. Os Manuscritos do Mar Morto
O Grande Rolo de Isaías (1QIsaa), datado do século II a.C., traz Isaías 53 de forma quase idêntica ao texto massorético, evidenciando sua autoridade no judaísmo anterior ao cristianismo. Textos sectários como 4Q285 (“Rolo do Messias Traspassado”) descrevem um Messias que será morto, em aparente cumprimento do plano divino. O fragmento afirma que ele será “traspassado”, expressão que remete ao vocabulário de Isaías 53:5 (וְהוּא מְחֹלָל מִפְּשָׁעֵנוּ, “ele foi traspassado por nossas transgressões”).
Outro documento, 4Q541 (Apocalipse Messiânico), menciona um líder escatológico que “purificará os pecados” e sofrerá provações, em ressonância com a função vicária descrita em Isaías 53 [5].
3.1. Tradições Pré-Cristãs
Além de Qumran, fontes como os Salmos de Salomão (século I a.C.) não citam Isaías 53 diretamente, mas revelam a expectativa de um Messias justo, confirmando que a esperança messiânica estava em plena formação.
Essas evidências primárias demonstram que a ideia de um Messias sofredor não é uma invenção cristã tardia, mas estava presente em alguns círculos judaicos antes do século I d.C.
Joseph Klausner confirma:
“Embora a ideia dominante fosse nacional, não é possível negar que tradições messiânicas ligadas ao Servo já existiam no judaísmo anterior ao cristianismo”[5].
4. Desenvolvimento Hermenêutico Judaico
A interpretação coletiva (Servo = Israel) consolida-se no período medieval, especialmente em Rashi (séc. XI), como reação polêmica à apologética cristã. Shalom Paul observa:
“A leitura nacional de Isaías 53 foi uma estratégia hermenêutica para distanciar o texto da cristologia”[6].
Assim, a exegese judaica atual não reflete necessariamente a compreensão mais antiga, mas uma reinterpretação defensiva.
5. Diálogo com a Crítica Moderna
A maioria dos hebraístas modernos admite que o contexto imediato favorece Israel como servo coletivo. Contudo, como destaca Goldingay:
“O capítulo 53 extrapola o conceito coletivo, introduzindo uma figura que age de forma sacerdotal e vicária, algo sem paralelo em descrições da nação” [7].
Esse deslocamento semântico permite uma leitura tipológica, reconhecida inclusive por críticos não confessionalmente cristãos.
Conclusão
A análise interna do hebraico de Isaías 53 aponta para uma figura distinta do povo, que sofre vicariamente pelos pecados de Israel, sendo “cortado da terra dos viventes” e transformando-se em oferta pela culpa. A aplicação ao Messias não é uma invenção cristã tardia, mas encontra eco em tradições judaicas pré-cristãs, refletidas nos Targumim e discutidas por intérpretes antigos. A leitura coletiva (Israel) não explica satisfatoriamente a individualidade, a morte e o caráter sacrificial do Servo. Assim, do ponto de vista exegético e histórico, Isaías 53 projeta uma figura única com papel redentor, antecipando o conceito messiânico que o cristianismo identificará em Jesus.
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Referências
[1] YOUNG, Edward J. The Book of Isaiah: Chapters 40–66. Grand Rapids: Eerdmans, 1972.
[2] MOTYER, J. A. The Prophecy of Isaiah: An Introduction & Commentary. Leicester: InterVarsity Press, 1993.
[3] WRIGHT, Christopher J. H. The Mission of God: Unlocking the Bible’s Grand Narrative. Downers Grove: IVP Academic, 2006.
[4] MOTYER, J. A. The Prophecy of Isaiah: An Introduction & Commentary. Leicester: InterVarsity Press, 1993.
[5] COLLINS, John J. The Scepter and the Star: Messianism in Light of the Dead Sea Scrolls. Grand Rapids: Eerdmans, 2010.
[5] KLAUSNER, Joseph. The Messianic Idea in Israel: From Its Beginning to the Completion of the Mishnah. New York: Macmillan, 1955.
[6] PAUL, Shalom. Isaiah 40–66: A Commentary. Minneapolis: Fortress Press, 2012.
[7] GOLDINGAY, John. The Theology of the Book of Isaiah. Downers Grove: IVP Academic, 2014.