A cidade de Nazaré, localizada na Baixa Galileia, tem sido objeto de intensas investigações arqueológicas voltadas à compreensão do contexto histórico e material do século I. Entre as descobertas mais discutidas está a possível identificação da casa onde Jesus teria passado sua infância. Essa hipótese, defendida pelo historiador e arqueólogo britânico Ken Dark, ganhou notoriedade ao sugerir que estruturas escavadas sob o Convento das Irmãs de Nazaré correspondem a uma habitação doméstica do período romano inicial, posteriormente venerada pelos cristãos bizantinos. No presente artigo analisaremos criticamente as evidências arqueológicas, a tradição patrística e as interpretações acadêmicas relacionadas à possível “casa de Jesus”, dialogando com diferentes posições historiográficas.
1. Introdução
A arqueologia bíblica desempenha papel essencial na reconstituição do ambiente histórico e sociocultural em que emergiu o cristianismo primitivo. Em Nazaré, uma pequena vila judaica do século I, pesquisas recentes reacenderam debates acerca da materialidade da vida de Jesus e da historicidade das tradições cristãs sobre locais sagrados. A hipótese formulada pelo Professor Ken Dark sobre a “casa de Jesus” tem gerado debates que envolvem não apenas a interpretação de evidências materiais, mas também a hermenêutica das fontes literárias tardo-antigas, como De Locis Sanctis de Adomnán (século VII)[1].
2. Contexto Histórico e Arqueológico de Nazaré
Nazaré, no primeiro século, era uma pequena vila/aldeia agrícola, com casas construídas parcialmente na rocha e parcialmente em alvenaria simples, geralmente com um pátio interno (courtyard house), características comuns à Galileia rural sob domínio romano [2]. As escavações no sítio do Convento das Irmãs de Nazaré identificaram não apenas vestígios habitacionais, mas também sepultamentos do tipo kokhim, uma cisterna e uma série de estruturas que indicam ocupação contínua até a construção de um complexo religioso bizantino [3]. Essa sequência estratigráfica sugere que o local manteve relevância cultual desde os primeiros séculos da era cristã. A presença de mosaicos e fragmentos arquitetônicos do período bizantino reforça a hipótese de que a memória cristã vinculava aquele espaço a um episódio significativo da vida de Jesus, possivelmente sua infância [4].
3. A Hipótese de Ken Dark
Dr. Ken Dark, professor associado à Universidade de Reading no Reino Unido, liderou o Nazareth Archaeological Project a partir de 2006, reavaliando dados das escavações do século XIX conduzidas por freiras e complementando-as com métodos modernos de análise estratigráfica, fotogrametria e datação [5]. Em suas publicações mais recentes, como The Sisters of Nazareth Convent: A Roman-period, Byzantine and Crusader site in central Nazareth (2020), Dark argumenta que:
A casa sob o convento apresenta técnicas construtivas coerentes com o século I, incluindo paredes de calcário não aparelhadas, reboco argiloso e elementos associados a práticas domésticas judaicas da época [6].
A veneração bizantina do local, manifestada na edificação de uma igreja monumental sobre as ruínas, indica a preservação de uma tradição local que associava a estrutura a Jesus e sua família [7]. Embora faltem inscrições explícitas, a convergência entre a arqueologia e as fontes literárias tardias, como a descrição da igreja da nutrição (ecclesia nutritionis) em Adomnán, dá plausibilidade à hipótese [8].
4. Tradição, Memória e Arqueologia: Limites da Evidência
É importante notar que a identificação de um sítio arqueológico com um personagem histórico específico enfrenta desafios epistemológicos significativos. A ausência de uma inscrição nominativa ou de artefatos explicitamente cristãos do século I impede qualquer afirmação conclusiva. Como observa James Strange, especialista em arqueologia da Galileia, “a arqueologia pode nos dizer como viviam as pessoas na época de Jesus, mas raramente pode apontar para um indivíduo específico”[9]. Outro ponto crucial é a historicidade da memória. A edificação de igrejas bizantinas sobre casas ou grutas — como em Belém e no Monte das Oliveiras — reflete um padrão devocional que busca materializar tradições orais. Contudo, isso não garante autenticidade histórica, mas indica a força e a antiguidade dessas tradições no imaginário cristão [10].
5. Interpretação Historiográfica
A hipótese de Dark insere-se no debate entre duas correntes historiográficas:
Ceticismo crítico, que rejeita qualquer identificação arqueológica direta com a vida de Jesus, enfatizando os riscos de anacronismo e de contaminação pela tradição devocional [11]. Pragmatismo arqueológico, que, embora reconheça os limites da prova, considera plausível que tradições locais, preservadas e monumentalizadas precocemente, possuam algum grau de autenticidade [12]. Assim, a questão permanece aberta: embora a casa sob o convento não possa ser declarada com certeza como a “casa de Jesus”, ela constitui um testemunho valioso da Nazaré do século I e do processo de sacralização de espaços no cristianismo antigo.
6. Conclusão
Portanto as escavações em Nazaré não fornecem prova definitiva sobre a residência de Jesus, mas revelam um sítio arqueológico de grande relevância para compreender o contexto histórico da Galileia do século 1 e a construção da memória cristã. A análise de Ken Dark propõe uma interpretação que, embora não conclusiva, é sustentada por uma convergência notável entre evidência material e tradição histórica. A prudência acadêmica exige que falemos em hipótese plausível, não em certeza. Entretanto, essa hipótese contribui para o diálogo interdisciplinar entre arqueologia, história e teologia, reforçando a complexidade do estudo das Origens Cristãs.
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Referências
[1] ADOMNÁN. De Locis Sanctis. Edição de Denis Meehan. Dublin: Dublin Institute for Advanced Studies, 1958.
[2] BAGATTI, B. Excavations in Nazareth: From the Beginning until the 12th Century. Jerusalem: Franciscan Printing Press, 1969.
[3] DARK, Ken. The Sisters of Nazareth Site: A Roman-period, Byzantine and Crusader site in central Nazareth. Palestine Exploration Quarterly, Londres, 2020.
[4] TAYLOR, J. Christians and the Holy Places. Oxford: Clarendon Press, 1993.
[5] DARK, Ken. Archaeology of Jesus’ Nazareth. Oxford: Oxford University Press OUP, 2023.
[6] DARK, Ken. Has Jesus’ Childhood Home Been Found? Biblical Archaeology Review, Washington, 2015.
[7] FINEGAN, Jack. The Archaeology of the New Testament. Princeton: Princeton University Press, 1992.
[8] WILKINSON, John. Jerusalem Pilgrims Before the Crusades. Warminster: Aris & Phillips, 1977.
[9] STRANGE, James. Archaeology and the Galilean Jesus. In: FIENSY, David (Ed.). Galilee in the Late Second Temple and Mishnaic Periods. Minneapolis: Fortress Press, 2014.
[10] TAYLOR, J. Christians and the Holy Places. Oxford: Clarendon Press, 1993.
[11] LEMAIRE, André. Les lieux saints et l’archéologie. Revue Biblique, Paris, 2001.
[12] PIXNER, Bargil. Paths of the Messiah. San Francisco: Ignatius Press, 1996.