As Seitas Judaicas na Antiguidade: Fariseus, Saduceus e Essênios – Uma Análise Histórica e Teológica

 


As Seitas Judaicas na Antiguidade: Fariseus, Saduceus e Essênios – Uma Análise Histórica e Teológica


O Judaísmo do período do Segundo Templo (516 a.C. – 70 d.C.) caracterizou-se por um pluralismo religioso que resultou na formação de grupos ou “seitas” com diferentes perspectivas teológicas, políticas e sociais. Entre os mais influentes estavam os fariseus, os saduceus e os essênios, mencionados por fontes como Josefo (Antiguidades Judaicas; Guerras Judaicas), Fílon de Alexandria e Plínio, o Velho. A análise dessas correntes é essencial para compreender o contexto em que emergiu o Cristianismo Primitivo e as tensões intra-judaicas que marcaram o primeiro século.

1. Contexto Histórico

O surgimento dessas seitas deve ser entendido no contexto da dominação estrangeira sucessiva – persa, grega e romana – e na necessidade de definir a identidade judaica frente às pressões helenísticas e políticas. A partir do período hasmoneu (séc. II a.C.), a fragmentação interna intensificou-se, gerando movimentos com propostas distintas sobre Lei, pureza, destino, ressurreição e autoridade religiosa [1].

2. Fariseus: Surgimento, Interpretação da Lei e Liderança Popular

2.1. Origem e Desenvolvimento Histórico dos Fariseus no Judaísmo do Segundo Templo

O surgimento dos fariseus está intrinsecamente ligado ao contexto histórico do período do Segundo Templo (516 a.C.–70 d.C.), marcado por profundas mudanças políticas, culturais e religiosas. Este movimento religioso judaico emergiu entre os séculos II a.C. e I d.C., em resposta aos desafios impostos pela dominação estrangeira e pela crescente helenização. Após o exílio babilônico (586 a.C.) e a subsequente reconstrução do Templo em Jerusalém, consolidou-se no judaísmo uma ênfase dual: o culto sacrificial no Templo e a observância rigorosa da Lei (Torá). Contudo, sob a influência helenística e a opressão selêucida, a identidade religiosa judaica sofreu tensões significativas, culminando na Revolta dos Macabeus (167–160 a.C.) contra a imposição cultural e religiosa estrangeira. Dentro deste cenário, os fariseus emergem como herdeiros dos hasidim (“piedosos”), grupo que inicialmente apoiou a resistência macabeia. O próprio nome fariseu, do hebraico perushim (“separados”), reflete sua preocupação em manter a pureza ritual e a separação das práticas consideradas impuras. Diferenciando-se dos saduceus, que detinham o controle sacerdotal do Templo, os fariseus deslocaram o foco para a interpretação e aplicação da Lei no cotidiano, tornando a religiosidade mais acessível fora do âmbito sacerdotal. Uma das marcas distintivas do farisaísmo foi a defesa da Lei oral — um conjunto de tradições interpretativas que complementava a Lei escrita (Torá) —, conferindo-lhes autoridade no ensino e na formação ética do povo. Ademais, sustentavam doutrinas como a ressurreição dos mortos, a existência de anjos e a realidade do juízo final, crenças rejeitadas pelos saduceus. Essa perspectiva os tornou influentes nas sinagogas e na vida comunitária, ainda que não possuíssem controle direto sobre o culto no Templo. Após a destruição do Templo em 70 d.C., a tradição farisaica se consolidou como a base do judaísmo rabínico, que prevalece até os dias atuais, revelando sua profunda relevância histórica e teológica. [10]

2.2. Crenças e Doutrina

Segundo Josefo, os fariseus constituíam a “escola filosófica” mais popular e influente entre os judeus [2]. Ele afirma que “acreditam que as almas têm um vigor imortal, e que sob a terra haverá recompensas ou punições, conforme viveram virtuosamente ou viciosamente” (Ant. 18.14)[3]. Defendiam a ressurreição dos justos, a imortalidade da alma e um equilíbrio entre providência divina e livre-arbítrio, posição que Josefo descreve como uma síntese: “Deus governa, mas o homem também é livre para escolher” (Ant. 13.171)[4]. Além disso, sustentavam a autoridade tanto da Lei Escrita (Torá) quanto da Lei Oral, tradição transmitida pelos “pais” e considerada vinculante, ao contrário dos saduceus que a rejeitavam [5]. Essa tradição oral se tornou base do judaísmo rabínico pós-70 d.C.

2.3. Influência Sociopolítica

Josefo enfatiza que, embora não numerosos (cerca de 6.000 membros), exerciam grande autoridade popular: “gozam de tal crédito junto ao povo, que o que dizem sobre o bem e o mal é aceito como lei” (Guerras 2.162)[6]. Essa influência se dava principalmente via sinagogas, interpretação da Lei e controle sobre questões do cotidiano. Acadêmicos como Sanders [7] confirmam que o farisaísmo representava uma espiritualidade acessível, distinta da aristocracia sacerdotal dos saduceus.

3. Saduceus: Elitismo Sacerdotal e Conservadorismo

3.1. Doutrina

Os saduceus formavam um grupo associado à elite sacerdotal e à aristocracia de Jerusalém. Josefo descreve sua teologia como racionalista: “afirmam que a alma morre com o corpo e que não há castigos nem recompensas depois da morte” (Ant. 18.16)[8]. Rejeitavam a tradição oral, mantendo apenas a Torá escrita como norma, o que lhes conferia uma postura conservadora.

3.2. Política e Sociedade

Segundo Josefo, eram menos populares que os fariseus e inclinados à colaboração com poderes estrangeiros (Guerras 2.166)[9]. Sua influência estava ligada ao controle do Templo e das funções sacerdotais, mantendo forte vínculo com Roma. Para Neusner [10], essa associação com a aristocracia os tornava impopulares, apesar do poder institucional.

4. Essênios: Surgimento, Separatismo e Piedade Comunitária

4.1. Origem e Desenvolvimento dos Essênios no Contexto do Judaísmo do Segundo Templo

Os essênios constituíram uma das correntes mais enigmáticas e radicais do judaísmo do período do Segundo Templo emergindo como resposta às crises políticas, religiosas e culturais que marcaram a sociedade judaica após a helenização e a ascensão da dinastia hasmoneia. Sua origem remonta, segundo a maioria dos estudiosos, ao século II a.C., no contexto de tensões internas sobre a legitimidade do sacerdócio e a interpretação da Lei.

4.2. Contexto Histórico e Formação

A Revolta dos Macabeus (167–160 a.C.) contra a imposição cultural selêucida originou diferentes grupos no judaísmo, todos buscando preservar a identidade religiosa e a pureza ritual. Enquanto os saduceus permaneceram ligados ao poder sacerdotal e os fariseus enfatizaram a interpretação oral da Torá, os essênios optaram por um separatismo radical, abandonando a estrutura cultual de Jerusalém. Sua formação é frequentemente atribuída à cisão entre grupos sacerdotais, que rejeitaram a autoridade dos sumos sacerdotes hasmoneus por considerá-los ilegítimos e contaminados por práticas políticas.

4.3. Origem e Influências

O nome “essênios” (Essenoi ou Essaioi, de origem grega) não possui etimologia hebraica clara, mas muitos estudiosos associam seu surgimento a ideais semelhantes aos dos ḥasidim (os “piedosos”) citados em 1 e 2 Macabeus, embora não se possa afirmar continuidade direta. Autores como Geza Vermes e Lawrence Schiffman apontam afinidades espirituais, enquanto Jacob Neusner rejeita a hipótese de derivação orgânica, considerando os essênios como produto de dissidências internas do sacerdócio [10].

4.4. Crenças, Práticas e Organização

A espiritualidade essênia caracterizava-se por:

Separatismo comunitário: Vida em colônias isoladas, com regras rígidas e propriedade coletiva.

Pureza ritual extrema: Banhos diários (mikvê), alimentação controlada e observância estrita da Lei.

Escatologia e dualismo: Expectativa de um conflito apocalíptico entre os “Filhos da Luz” (eles mesmos) e os “Filhos das Trevas”, como atestam os Manuscritos do Mar Morto.

Calendário solar: Em oposição ao calendário lunar-sacerdotal de Jerusalém, reforçando sua ruptura com o Templo.

Estrutura hierárquica rígida: Com graus de iniciação e disciplina severa, incluindo a exclusão de membros que violassem as normas. Fontes como Flávio Josefo, Fílon de Alexandria e Plínio, o Velho descrevem-nos como ascetas dedicados à virtude, à vida comunitária e, em muitos casos, ao celibato.

4.5. Qumran e os Manuscritos do Mar Morto

A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto em Qumran (a partir de 1947) fortaleceu a identificação dos essênios com essa comunidade. Documentos como a Regra da Comunidade revelam normas, crenças e expectativas messiânicas que confirmam descrições antigas e evidenciam uma religiosidade apocalíptica, rigorista e sectária. A destruição do centro de Qumran pelos romanos (c. 68 d.C.) e a catástrofe da Guerra Judaico-Romana (66–73 d.C.) levaram ao desaparecimento dos essênios como grupo organizado. Contudo, sua literatura apocalíptica influenciou correntes messiânicas do judaísmo e, possivelmente, aspectos do cristianismo primitivo.

4.6. Estilo de Vida e Crenças

Os essênios são descritos por Josefo, Fílon e Plínio como um grupo ascético, vivendo em comunidades separadas, provavelmente ligadas a Qumran [11]. Josefo relata sua vida de simplicidade, compartilhamento de bens e dedicação à pureza ritual (Guerras 2.119-161)[12]. Criam na imortalidade da alma, mas não na ressurreição física. Sua ênfase em predestinação e pureza os aproximava mais do dualismo apocalíptico do que do legalismo farisaico.

4.7. Função Histórico-Religiosa

Estudos recentes (VanderKam, 2010)[13] associam os essênios aos manuscritos do Mar Morto, que revelam uma escatologia apocalíptica e expectativas messiânicas duais (sacerdotal e régia). Essa visão reforça sua ruptura com o Templo e os grupos sacerdotais de Jerusalém.

5. Comparação Analítica

A análise comparativa das três seitas revela diferenças fundamentais em aspectos teológicos, sociais e institucionais. Os fariseus conciliavam a Lei Escrita com a Tradição Oral, ampliando a aplicação da Torá ao cotidiano, o que lhes conferia uma espiritualidade prática e popular. Eles criam na ressurreição dos mortos e na existência de recompensas ou punições após a morte, posição que, segundo Josefo, lhes garantia prestígio junto ao povo [3][6]. Já os saduceus rejeitavam qualquer noção de ressurreição ou imortalidade da alma, mantendo uma teologia estritamente centrada na Torá escrita [8]. Sua influência estava restrita à elite sacerdotal e ao culto do Templo, o que os distanciava da religiosidade popular. Por outro lado, os essênios adotavam um separatismo radical, vivendo em comunidades isoladas, com ênfase em pureza ritual, ascetismo e escatologia apocalíptica [11][12]. Sua crença na imortalidade da alma, porém não na ressurreição corpórea, e sua visão determinista do destino os aproximavam de uma religiosidade distinta, marcada pela expectativa messiânica e ruptura com a ordem sacerdotal vigente [13]. Essas diferenças mostram que os fariseus se posicionavam como mediadores entre o rigor da Lei e a vida popular, tornando-se o grupo com maior impacto histórico, já que, após a destruição do Templo em 70 d.C., sua tradição oral e ensino sinagogal se transformaram no alicerce do judaísmo rabínico. Em contraste, os saduceus desapareceram com o Templo, e os essênios não sobreviveram como movimento institucionalizado. Neste estudo evidenciamos que as seitas judaicas do Segundo Templo refletem uma tensão entre tradição e adaptação, pureza e inclusão, esperança escatológica e pragmatismo político. Os fariseus destacam-se por seu papel mediador, influenciando a religião e menatalidade popular e tornando-se base do judaísmo pós-70 d.C. Os saduceus, atrelados ao poder sacerdotal e romano, desapareceram com a destruição do Templo. Os essênios, isolados e apocalípticos, influenciaram as expectativas messiânicas, mas não sobreviveram como movimento organizado.

Considerações Finais 

Portanto as divergências entre fariseus, saduceus e essênios mostram que o judaísmo do primeiro século não era monolítico, mas plural e dinâmico, ou seja, extremamente fragmentado, respondendo a pressões culturais e políticas diversas. Esse contexto explica não apenas os debates nos Evangelhos, mas também o surgimento do Cristianismo, que dialoga e, em muitos aspectos, rompe com esses paradigmas. Como Josefo descreveu, tais seitas representavam “escolas de filosofia” judaica (Guerras 2.119), refletindo uma sociedade em busca de identidade e esperança sob o jugo estrangeiro.

_______________________________

Referências 

[1] GOODMAN, Martin. Judaism in the Roman World. Leiden: Brill, 2007.

[2] SANDERS, E. P. Judaism: Practice and Belief, 63 BCE – 66 CE. London: SCM Press, 1992.

[3] JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas. Trad. William Whiston. Livro 18, §14.

[4] JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas. Livro 13, §171.

[5] VERMES, Geza. The Complete Dead Sea Scrolls in English. London: Penguin, 2012.

[6] JOSEFO, Flávio. Guerras Judaicas. Livro 2, §162.

[7] SANDERS, E. P. Paul and Palestinian Judaism. London: SCM Press, 1977.

[8] JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas. Livro 18, §16.

[9] JOSEFO, Flávio. Guerras Judaicas. Livro 2, §166.

[10] NEUSNER, Jacob. From Politics to Piety: The Emergence of Pharisaic Judaism. New York: KTAV, 1973.

[11] FÍLON de Alexandria. Hypothetica.

[12] JOSEFO, Flávio. Guerras Judaicas. Livro 2 §§119-161.

[13] VANDERKAM, J. The Dead Sea Scrolls and the History of Judaism. Grand Rapids: Eerdmans, 2010.






DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Novo Testamento e Origens Cristãs pelo Seminário Bíblico de São Paulo/SP (FETSB); Mestre (M.A.) em Teologia e Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG). É teólogo, biblista, historiador e apologista cristão evangélico.

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem