O conceito de ressurreição corporal ocupa lugar central na teologia paulina, particularmente em 1 Coríntios 15. Longe de uma mera alegoria espiritual, Paulo defende com veemência a realidade física da ressurreição, fundamentando-se tanto na ressurreição de Jesus como primícias quanto na esperança escatológica coletiva do povo de Deus. Neste breve artigo, analisaremos criticamente o entendimento de Paulo, argumentando que a mentalidade paulina está intrinsecamente ancorada na tradição judaica das Escrituras Hebraicas, que concebe a ressurreição como um ato escatológico e físico, promovido por Deus na consumação dos tempos.
1. O “Soma” como Corpo Físico e Identidade Humana
Robert Gundry, em sua obra seminal: Sōma in Biblical Theology: With Emphasis on Pauline Anthropology, rejeita qualquer tentativa de desmaterializar o conceito de "soma" (σῶμα) no Novo Testamento. Para ele, "soma" denota de forma consistente o corpo físico, mesmo nas passagens escatológicas de Paulo¹. Isso o leva a concluir como também o presente autor, que a ressurreição em Paulo não pode ser compreendida como uma mera sobrevivência da alma ou como uma experiência espiritualizada de continuidade, mas como a revivificação transformada do corpo físico. Essa leitura é particularmente relevante em 1 Coríntios 15, onde Paulo contrasta o corpo "natural" (ψυχικόν) com o corpo "espiritual" (πνευματικόν), sem negar a fisicalidade do corpo ressurreto, mas afirmando sua transformação qualitativa.
A insistência de Paulo na corporeidade literal da ressurreição responde diretamente a uma tendência coríntia de espiritualizar ou negar a ressurreição futura. A defesa de Paulo está enraizada na ressurreição histórica de Jesus, a qual ele considera como a primeira instância — as "primícias" (ἀπαρχὴ) — da futura ressurreição escatológica dos fiéis (1Co 15.20-23). Como nota Wright, “sem a ressurreição física de Jesus, não há fundamento para qualquer esperança escatológica futura em Paulo”².
2. Ressurreição e Escatologia: A Mentalidade Judaica de Paulo
A cosmovisão de Paulo, frequentemente rotulada como “helenista”, é, na verdade, profundamente hebraica. Sua teologia da ressurreição encontra eco direto nas Escrituras Hebraicas, especialmente em textos como Isaías 26.19, Daniel 12.2 e Ezequiel 37, que descrevem a restauração de Israel de forma corporal e coletiva. Para Paulo, a ressurreição é o cumprimento dessa esperança veterotestamentária, uma intervenção escatológica de Deus para restaurar a criação e vindicar os justos.
Essa leitura é reforçada pelo uso que Paulo faz da imagem do "último Adão" e da tipologia de Cristo como o novo homem escatológico (1Co 15.45-49). Assim como a morte entrou no mundo por meio do primeiro Adão, a vida ressurreta se manifesta em Cristo, o novo Adão, cuja ressurreição inaugura a nova criação. A corporeidade da ressurreição é, portanto, indispensável: não há nova criação sem novos corpos.
Além disso, a linguagem de “transformação” (1Co 15.51-54) indica continuidade e descontinuidade. O corpo ressurreto não é um corpo etéreo, mas um corpo glorificado, liberto da corrupção, mas ainda reconhecivelmente físico. Gundry enfatiza que Paulo jamais dissocia o "soma" da identidade pessoal: a salvação é corporal porque a pessoa é corpo³.
3. Implicações Teológicas e Antropológicas
A ressurreição corporal em Paulo tem implicações teológicas profundas: ela afirma a bondade da criação material e a fidelidade de Deus à totalidade da pessoa humana. Em contraste com as concepções platônicas que desprezam o corpo como prisão da alma, Paulo reafirma a dignidade do corpo como parte integrante da redenção. Isso também se reflete na sua ética: o corpo é templo do Espírito (1Co 6.19) e será transformado, não descartado. A esperança cristã, portanto, não é a imortalidade da alma, mas a ressurreição do corpo.
A ressurreição do Senhor Jesus é o paradigma dessa esperança. Sua vitória sobre a morte é vista não apenas como evento histórico, mas como o início da consumação escatológica. Em Paulo, escatologia não é mera expectativa futura, mas realidade presente que já começou com Cristo. Isso faz da ressurreição não apenas um dogma, mas uma força moldadora da vida cristã presente.
Conclusão
A teologia paulina da ressurreição, conforme expressa em 1 Coríntios 15, deve ser compreendida como um compromisso radical com a corporeidade e com a esperança escatológica das Escrituras Hebraicas. Contra leituras dualistas ou espiritualizadas, Paulo insiste na fisicalidade da ressurreição como clímax do plano divino. A ressurreição de Cristo é o evento inaugural da nova criação e a garantia da ressurreição futura. Com isso, Paulo reafirma a integridade da pessoa humana e a fidelidade de Deus à sua criação, fundamentando a esperança cristã não em abstrações filosóficas, mas na carne literal transformada do Cristo ressuscitado.
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Notas
1. GUNDRY, Robert H. Soma in Biblical Theology: With Emphasis on Pauline Anthropology. Cambridge: Cambridge University Press, 1976. p. 49-50.
2. WRIGHT, N. T. The Resurrection of the Son of God. Minneapolis: Fortress Press, 2003. p. 207.
3. GUNDRY, Robert H. Soma in Biblical Theology: With Emphasis on Pauline Anthropology. Cambridge: Cambridge University Press, 1976. p. 69-70.