A Escatologia Inaugurada em Paulo: A Morte e Ressurreição de Cristo como Início dos Últimos Dias

 

A Escatologia Inaugurada em Paulo: A Morte e Ressurreição de Cristo como Início dos Últimos Dias


A Escatologia Cristã Primitiva emerge no Novo Testamento como uma reinterpretação radical das esperanças escatológicas do Judaísmo do Segundo Templo. No centro dessa reinterpretação está a figura do Senhor Jesus, cuja Morte e Ressurreição não apenas apontam para um futuro escatológico, mas inauguram, dentro da História, o início dos "Ultimos Dias". O apóstolo Paulo é o grande teólogo dessa nova perspectiva, ao interpretar o evento Cristo como o momento de inflexão decisiva na história da salvação. Sua teologia apresenta uma escatologia que já foi iniciada – o “já” – mas que aguarda consumação futura – o “ainda não”. Neste artigo analisaremos, à luz das Escrituras e da teologia paulina, como a morte e a ressurreição de Cristo representam a inauguração escatológica do Reino de Deus, rompendo com os paradigmas escatológicos judaicos anteriores.

1. Escatologia no Judaísmo do Segundo Templo

O Judaísmo do Segundo Templo esperava uma intervenção escatológica de Deus no fim da História, por meio da vinda do Messias, da ressurreição dos mortos, do juízo final e da restauração de Israel (cf. Dn 12:2-3; Is 65:17-25). O tempo presente era visto como corrupto, sofrido e dominado por potências ímpias. A salvação era sempre projetada para o futuro, associada ao “Dia do Senhor” (Am 5,18) ou ao “fim dos tempos”. A expectativa messiânica não previa que o Messias sofresse, morresse e ressuscitasse no meio da história. Essa divisão entre o tempo presente (ha-olam ha-zeh) e o tempo futuro (ha-olam ha-ba) era bem estabelecida.

2. A Inauguração Escatológica no Pensamento Paulino

2.1 Cristo Como o Centro Escatológico da História

Para Paulo, a morte e ressurreição do Senhor Jesus não são eventos isolados, mas o evento escatológico central da História da Salvação. É a partir de Cristo que o apóstolo compreende que os “últimos dias” já foram inaugurados:

  “Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei” (Gl 4:4).

Paulo vê na ressurreição de Cristo o início da nova criação e da era messiânica. Ele a interpreta como as “primícias” da ressurreição geral:

  “Cristo ressuscitou dos mortos, sendo as primícias dos que dormem” (1Cor 15:20).

Essa linguagem indica que a ressurreição de Cristo não é um evento isolado, mas o início antecipado daquilo que era esperado apenas para o fim dos tempos.

Como N. T. Wright afirma,  “o que o judaísmo esperava que acontecesse no fim dos tempos, Paulo afirma que aconteceu com Jesus no meio da história”[1].

2.2 A Nova Era e a Nova Criação

A ressurreição inaugura a nova criação, que não é apenas futura, mas já está em curso:

  “Se alguém está em Cristo, é nova criatura. As coisas antigas passaram; eis que tudo se fez novo” (2Cor 5:17).

Com isso, Paulo entende que a nova era escatológica entrou no mundo dentro da história, rompendo o paradigma linear do judaísmo. O tempo escatológico já começou, ainda que sua consumação plena esteja por vir (cf. Rm 8:23).

3. A Nova Aliança Como Cumprimento Profético

Paulo entende a obra de Cristo como a inauguração da nova aliança, prometida pelos profetas:

   “Esta é a aliança que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor: porei as minhas leis no seu interior...” (Jr 31:31-34).

Para ele, essa aliança se cumpre no ministério do Espírito (2Cor 3:6). O Espírito é sinal da nova era e da antecipação da glória futura:

  “Temos as primícias do Espírito, e gememos interiormente, esperando a adoção, a redenção do nosso corpo” (Rm 8:23).

Essa tensão entre o já inaugurado e o ainda não consumado constitui a estrutura da escatologia paulina, profundamente ligada à atuação do Espírito Santo na comunidade cristã.

Como Gordon Fee destaca, o Espírito, para Paulo, “é o agente da nova era escatológica, o sinal visível da realidade invisível do Reino já presente”[5] .

4. A Tensão do “Já e Ainda Não”

A escatologia paulina vive da tensão entre o que já foi realizado em Cristo e o que ainda se aguarda. Ele fala do Reino de Deus como algo presente:

O Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14:17).

Mas também espera um cumprimento final:

  “Depois virá o fim, quando Ele entregar o Reino ao Deus e Pai...” (1Cor 15:24).

Essa estrutura dialética rompe com o modelo judaico anterior, que esperava a manifestação do Reino somente no futuro. Para Paulo, o Reino já está presente na comunidade cristã, mas ainda espera sua manifestação escatológica plena na parousia.

Como James D. G. Dunn observa, “Paulo interpreta a cruz e a ressurreição como a invasão do futuro escatológico no presente”[3].

5. A Cruz como Juízo e Vitória Escatológica

A morte de Cristo na cruz não é apenas redenção moral ou sacrifício expiatório, mas também um evento escatológico. A cruz é onde o pecado é julgado, o inimigo é vencido, e a nova era é inaugurada:

  “Despojando os principados e potestades, os expôs publicamente e deles triunfou na cruz” (Cl 2:15).

Aqui, Paulo vê a cruz como o lugar de um juízo antecipado e a ressurreição como vitória da vida sobre a morte (cf. 1Cor 15,55-57). O juízo escatológico começa na cruz, e não apenas no fim dos tempos.

Como afirma Oscar Cullmann, há uma diferença radical entre a escatologia paulina e o judaísmo apocalíptico: "em Cristo, o tempo final começou dentro da história; não estamos mais esperando o fim, mas vivendo em seus primeiros atos"[2].

6. A Segunda Vinda e a Consumação do Reino

Ainda que a nova era tenha sido inaugurada, Paulo aguarda com esperança a consumação escatológica, o dia em que Cristo voltará e o Reino será plenamente estabelecido:

  “O próprio Senhor descerá do céu... e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro” (1Ts 4:16).

   “Então virá o fim... para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15:28).

Essa espera não é passiva. A comunidade vive entre a cruz e a parousia, sustentada pela fé, esperança e amor (1Cor 13:13), testemunhando o Reino que já se manifestou e ainda virá.

Como Udo Schnelle sintetiza, “Paulo pensa a história da salvação como uma unidade contínua, cujo centro é Cristo, e que caminha de forma irreversível para sua consumação”[4].

Conclusão

Desse modo a escatologia paulina representa uma inovação revolucionária teológica sem precedentes: o fim dos tempos, que era esperado apenas como um ato final de Deus no futuro, já foi inaugurado por meio da Morte e Ressurreição de Cristo no meio da História. Com isso, Paulo rompe com o paradigma escatológico linear do Judaísmo do Segundo Templo, introduzindo uma nova compreensão do Tempo, da História e do Reino de Deus. O Reino já está presente, mas aguarda consumação. O juízo já foi iniciado na cruz, mas será plenamente revelado na parousia. A Nova Criação já começou, e os crentes vivem como primeiros frutos de uma realidade escatológica que, embora espitualmente presente, ainda está por se revelar em sua plenitude.

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Notas e Referências

[1] WRIGHT, N. T. Paul and the Faithfulness of God. Minneapolis: Fortress Press, 2013. p. 1471-1472.

[2] CULLMANN, Oscar. Cristo e o Tempo: A Interpretação do Tempo na Teologia do Novo Testamento. São Paulo: ASTE, 1972. p. 31-35.

[3] DUNN, James D. G. The Theology of Paul the Apostle. Grand Rapids: Eerdmans, 1998. p. 464-469.

[4] SCHNELLE, Udo. A Teologia do Apóstolo Paulo: Bases, Desenvolvimento e Perfil da sua Mensagem. São Leopoldo: Sinodal, 2005. p. 600-603.

[5] FEE, Gordon D. Paul, The Spirit, and The People of God. Peabody: Hendrickson Publishers, 1996. p. 85-91.


DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Novo Testamento e Origens Cristãs pelo Seminário Bíblico de São Paulo/SP (FETSB); Mestre (M.A.) em Teologia e Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG). É teólogo, biblista, historiador e apologista cristão evangélico.

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