O estudo da educação infantil no judaísmo do período do Segundo Templo é indispensável para compreender a formação intelectual e religiosa de figuras históricas relevantes, como Jesus de Nazaré. Inserido num contexto galileu marcado por práticas religiosas arraigadas, Jesus teria sido educado segundo modelos pedagógicos tradicionais que estruturaram a cultura judaica na virada da era cristã. Neste breve estudo examinatemos, de forma histórica e arqueológica, a organização do ensino infantil judaico na Galileia do século I, com ênfase em Nazaré, e discuteremos as implicações desse sistema educacional para a infância de Jesus, fundamentando-se nas pesquisas historiográficas e arqueológicas mais recentes e reconhecidas.
1. O Sistema Educacional Judaico do Segundo Templo
Desde o retorno do exílio babilônico (século VI a.C.) até o período romano, a sociedade judaica consolidou estruturas educacionais de forte caráter comunitário, tendo a sinagoga como epicentro. Essa instituição cumpria múltiplas funções — local de oração, assembleia, administração comunitária e escola [1]. A literatura rabínica — em especial a Mishná e o Talmude — evidencia um sistema escalonado de ensino que atendia progressivamente às idades e capacidades das crianças: o Beit Sefer para iniciação, o Beit Talmud para aprofundamento, e, por fim, o Beit Midrash destinado a estudos avançados [2].
No Beit Sefer, meninos a partir dos 5 ou 6 anos aprendiam o alfabeto hebraico, leitura, escrita e principalmente memorizavam extensos trechos da Torá [3]. Essa memorização não era apenas técnica, mas formava a base ética e religiosa do indivíduo, garantindo a transmissão intergeracional da tradição mosaica [4]. O Talmude (Bava Batra 21a) consagrou formalmente no século I d.C. o preceito de organizar escolas obrigatórias em todas as aldeias judaicas, atribuído a Joshua ben Gamla, mas estudiosos concordam que já havia escolas elementares desde o século II a.C., como prática consolidada instituída de maneira informal sob influência de Simão Ben Shatach influente fariseu e escriba que viveu por volta de 75 a.C [5]. Após a formação elementar, meninos por volta dos 10 a 12 anos poderiam prosseguir ao Bet Talmud, onde o método de ensino se tornava dialógico, baseado em perguntas, discussões e análise de casos da Lei Oral [6]. O objetivo era desenvolver a capacidade de argumentação — uma competência central na tradição farisaica [7]. Os mais aptos, posteriormente, poderiam continuar no Beit Midrash, estudando interpretações rabínicas de modo profundo, ambiente onde se formariam os escribas, mestres da Lei e futuros rabinos [8].
2. O Contexto Galileu: Educação e Sinagogas
A Galileia, nos tempos de Jesus, apresentava uma população fortemente judaica, espalhada em vilarejos agrícolas com identidade religiosa comum. Nazaré, na Baixa Galileia, era uma dessas pequenas aldeias, com estimativa populacional entre 400 e 2.000 habitantes no século I [9]. Apesar de seu tamanho reduzido, Nazaré compartilhava o mesmo padrão cultural e institucional de outras localidades galileias. A arqueologia confirma que a Galileia contava com sinagogas desde o século I, atuando como centros de leitura e ensino. Estruturas arqueológicas identificadas em Gamla, Migdala e Corazim revelam espaços com bancos em torno das paredes e um local central para a leitura da Torá — configuração típica de edifícios voltados à reunião comunitária e à instrução religiosa [10]. Embora a sinagoga atual de Nazaré (a chamada Synagogue Church) seja de origem medieval, há forte consenso entre arqueólogos de que foi erguida sobre fundações muito mais antigas, provavelmente do período do Segundo Templo [11].
Diante disso, é extremamente plausível — e historiadores consideram praticamente certo — que existia em Nazaré uma escola elementar vinculada à sinagoga, o Beit Sefer, seguindo o mesmo modelo galileu [12]. Flávio Josefo (37–100 d.C.), cronista judeu do primeiro século, descreve a intensa religiosidade galileia e a importância da leitura pública da Torá, corroborando a presença de instituições educativas mesmo em pequenas aldeias [13]. Assim, Nazaré, embora pequena, não seria exceção no panorama pedagógico galileu.
3. Métodos Didáticos, Alfabetização e Memorização
As práticas pedagógicas do Beit Sefer baseavam-se quase inteiramente na memorização oral. A historiadora do período Catherine Hezser estima que a alfabetização plena (capaz de produzir textos originais longos) era privilégio de uma minoria — cerca de 3% a 10% da população [14]. Entretanto, a chamada alfabetização funcional (ler e repetir textos religiosos) era muito mais difundida, pois todo menino judeu precisava participar das leituras na sinagoga e recitar porções da Torá [15]. O ensino combinava recitação repetitiva, cópia de pequenas passagens e canto cadenciado, métodos que, segundo Safrai, tornavam a memorização extremamente eficiente [16].
Essa pedagogia visava não apenas instruir no conteúdo textual, mas moldar valores e a identidade judaica desde a infância. Os estudiosos destacam que a escola judaica do período se diferenciava de modelos helenísticos por seu caráter profundamente comunitário e religioso, afastando-se de uma educação meramente literária para priorizar a transmissão ética e ritual [17]. É precisamente nesse contexto que se insere a infância de Jesus. O relato evangélico de Lucas 4:16–21, no qual Jesus lê publicamente em Nazaré, evidencia seu domínio da leitura e da interpretação do texto sagrado — habilidades coerentes com a formação recebida no Beit Sefer [18]. Além disso, sua posterior capacidade de debate com doutores da Lei e escribas indica familiaridade com o método dialógico do Beit Talmud, reforçando a hipótese de um percurso educativo típico da tradição farisaica galileia [19].
4. Reflexões sobre a Formação de Jesus em Nazaré
Considerando as fontes arqueológicas e textuais, é legítimo supor que Jesus tenha frequentado, desde a infância, o Beit Sefer da sinagoga de Nazaré, aprendendo a recitar, ler e interpretar a Torá como qualquer menino judeu de seu tempo [20]. A formação recebida na comunidade nazarena teria sido fundamental para capacitá-lo a interagir posteriormente com escribas, fariseus e outros grupos religiosos, com profundo domínio da Lei e dos costumes judaicos [21].
Além disso, a arqueologia demonstra que sinagogas do século I serviam efetivamente como escolas comunitárias. A semelhança arquitetônica entre as sinagogas galileias atesta um modelo comum, indicando que a tradição educativa era padronizada e não dependia exclusivamente de vilas grandes [22]. Portanto, Nazaré, ainda que pequena, dispunha dos recursos necessários para implementar tal ensino. A hipótese de que Jesus participou plenamente desse processo educativo não apenas explica suas habilidades posteriores, mas também reforça a coerência histórica dos evangelhos sinóticos ao retratá-lo interagindo publicamente na sinagoga local [23].
Conclusão
A análise histórica e arqueológica converge para o reconhecimento de um sistema educacional infantil amplamente difundido no judaísmo do século I, centrado na sinagoga e estruturado a partir dos níveis do Beit Sefer, Beit Talmud e Beit Midrash. Nazaré, embora aldeia modesta, inseria-se plenamente nesse modelo, fornecendo às crianças — principalmente meninos — a oportunidade de aprender leitura, escrita e a recitação da Torá. Jesus, portanto, muito provavelmente foi educado dentro desse contexto, o que fundamenta sua atuação posterior como mestre e intérprete das Escrituras. O estudo da educação infantil judaica de Nazaré lança luz sobre as bases intelectuais e religiosas de Jesus, oferecendo dados concretos para além da narrativa teológica. Como contribuição o presente autor defende que novas escavações arqueológicas em Nazaré poderiam confirmar a planta original da sinagoga do século I, bem como trazer inscrições ou utensílios escolares que comprovem in loco o funcionamento do Beit Sefer nazareno. Tal avanço consolidaria a conexão entre tradição textual e arqueologia, aprimorando a compreensão acadêmica da infância de Jesus e, por consequência, do judaísmo galileu em sua vivência cotidiana.
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Notas e Referências
[1] LEVINE, Lee I. The Ancient Synagogue: The First Thousand Years. New Haven: Yale University Press, 2000, p. 47.
[2] SAFRAI, Shmuel. Education in Ancient Israel. Jerusalem: Magnes Press, 1995, p. 22.
[3] HEZSER, Catherine. Jewish Literacy in Roman Palestine. Tübingen: Mohr Siebeck, 2001, p. 54.
[4] SANDERS, E. P. Judaism: Practice and Belief 63 BCE–66 CE. Philadelphia: Trinity Press International, 1992, p. 195.
[5] NEUSNER, Jacob. The Development of a Legend: Studies on the Traditions Concerning Yohanan ben Zakkai. Leiden: Brill, 1970, p. 68; MISHNÁ. Bava Batra 21a.
[6] SAFRAI, Shmuel. Education and the Study of Torah. Jerusalem: Magnes Press, 1987, p. 45.
[7] VERMES, Geza. Jesus the Jew: A Historian’s Reading of the Gospels. London: Collins, 1973, p. 34.
[8] NEUSNER, Jacob. A Life of Yohanan ben Zakkai. Leiden: Brill, 1962, p. 112.
[9] REED, Jonathan L. Archaeology and the Galilean Jesus: A Re-examination of the Evidence. Harrisburg: Trinity Press International, 2000, p. 76.
[10] MEYERS, Eric M. Galilee Through the Centuries: Confluence of Cultures. Winona Lake: Eisenbrauns, 1999, p. 141.
[11] CHANCEY, Mark A. The Myth of a Gentile Galilee. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 89.
[12] SAFRAI, Shmuel. Education in Ancient Israel. Jerusalem: Magnes Press, 1995, p. 30.
[13] JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas. Livro XX, § 267–268.
[14] HEZSER, Catherine. Jewish Literacy in Roman Palestine. Tübingen: Mohr Siebeck, 2001, p. 105.
[15] LEVINE, Lee I. The Ancient Synagogue: The First Thousand Years. New Haven: Yale University Press, 2000, p. 172.
[16] SAFRAI, Shmuel. Education and the Study of Torah. Jerusalem: Magnes Press, 1987, p. 53.
[17] SANDERS, E. P. Judaism: Practice and Belief 63 BCE–66 CE. Philadelphia: Trinity Press International, 1992, p. 200.
[18] EVANS, Craig A. Jesus and His World: The Archaeological Evidence. London: WJK, 2012, p. 91.
[19] VERMES, Geza. Jesus the Jew: A Historian’s Reading of the Gospels. London: Collins, 1973, p. 39.
[20] SAFRAI, Shmuel. Education in Ancient Israel. Jerusalem: Magnes Press, 1995, p. 33.
[21] NEUSNER, Jacob. A Life of Yohanan ben Zakkai. Leiden: Brill, 1962, p. 121.
[22] MEYERS, Eric M. Galilee Through the Centuries: Confluence of Cultures. Winona Lake: Eisenbrauns, 1999, p. 143.
[23] EVANS, Craig A. Jesus and His World: The Archaeological Evidence. London: WJK, 2012, p. 94.