O Problema Sinótico: Uma Análise Histórica e Crítica

 

O Problema Sinótico: Uma Análise Histórica e Crítica


O Problema Sinótico diz respeito à relação literária entre os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas. Este artigo revisa criticamente as principais hipóteses formuladas para explicar essa relação — com especial atenção à Hipótese das Duas Fontes, à proposta de Farrer-Goodacre e à Hipótese dos Dois Evangelhos — argumentando, com base em evidências históricas e textuais, que esta última representa a teoria mais sólida e coerente. Defende-se que a Hipótese dos Dois Evangelhos está mais alinhada com os testemunhos patrísticos e com a estrutura interna dos textos, enquanto as outras propostas enfrentam sérios obstáculos metodológicos e históricos.

1. O Problema Sinótico

No contexto acadêmico, relacionado aos estudos do Novo Testamento, "sinótico" refere-se aos Evangelhos Sinóticos: Mateus, Marcos e Lucas. Eles são chamados assim porque apresentam semelhanças de conteúdo, estrutura e narrativa, permitindo uma "visão conjunta" da vida e dos ensinamentos de Jesus. A palavra Sinótico provém da palavra Synopsis, termo que vem do grego "syn" (junto) + "opsis" (visão), ou seja, "visão conjunta" Esta interdependência entre os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas — visível em sua sobreposição temática, estrutural e lexical — constitui um dos grandes desafios da crítica bíblica moderna. Denominado "Problema Sinótico", este fenômeno levanta questões sobre a ordem de composição dos Evangelhos e suas fontes comuns ou mútuas. O debate atual está polarizado principalmente entre três grandes hipóteses: a das Duas Fontes, a de Farrer-Goodacre, e a dos Dois Evangelhos.

2. Desenvolvimento Histórico das Hipóteses

2.1. A Hipótese Tradicional: Prioridade de Mateus

A tradição mais antiga, representada por Papias (c. 130 d.C.) e seguida por Irineu e Orígenes, sustenta que Mateus escreveu primeiro, seguido por Lucas e depois Marcos¹. Essa ordem dominou por mais de 17 séculos até a ascensão da crítica moderna.

2.2. A Hipótese das Duas Fontes

Formulada no século XIX e refinada por B. H. Streeter, a Hipótese das Duas Fontes propõe a prioridade de Marcos e a existência de uma fonte hipotética chamada Q². Essa teoria permanece amplamente adotada no meio acadêmico. No entanto, a ausência total de qualquer referência ou manuscrito de Q na história da Igreja levanta sérias objeções³. Além disso, sua construção exige um complexo aparato editorial para justificar por que Lucas, com acesso a Mateus e Q, ignoraria sistematicamente materiais significativos de Mateus⁴.

2.3. A Hipótese de Farrer-Goodacre

Michael Goulder e Mark Goodacre reformularam a questão propondo uma alternativa sem a necessidade da fonte Q. Segundo essa hipótese, Marcos escreveu primeiro, Mateus usou Marcos, e Lucas usou ambos, Marcos e Mateus⁵. O mérito dessa proposta está na tentativa de simplificação: ela elimina a necessidade de Q. No entanto, sua fragilidade aparece em vários pontos:

Ausência de apoio patrístico: Não há evidência histórica de que Lucas tenha utilizado Mateus. Os testemunhos antigos sempre apontam Lucas usando uma tradição independente ou Mateus como o primeiro⁶.

Problemas com a ordem e estrutura: A estrutura de Lucas difere significativamente da de Mateus e Marcos. A proposta de que Lucas reestruturaria deliberadamente os discursos de Mateus (como o Sermão da Montanha) sem motivo convincente levanta questões de plausibilidade editorial⁷.

Ignorar a tradição: Ao propor Lucas como editor de Mateus, essa hipótese ignora completamente a tradição histórica da Igreja, baseada nos relatos de Papias, Irineu e outros, o que compromete sua credibilidade histórica⁸.

Assim, embora atraente por dispensar Q, a hipótese Farrer-Goodacre depende de uma série de reconstruções hipotéticas e desconsidera dados históricos concretos, sendo, portanto, limitada em seu valor explicativo.

3. A Hipótese dos Dois Evangelhos: Fundamentação Histórica e Literária

3.1. Estrutura da Hipótese

Reformulada por William R. Farmer e defendida por autores como David Dungan e John Wenham, essa hipótese propõe que:

1. Mateus escreveu primeiro.

2. Lucas usou Mateus.

3. Marcos escreveu por último, usando ambos como fontes resumidas.

Essa ordem está em total consonância com os relatos patrísticos mais antigos e requer o menor número de suposições não evidenciadas⁹.

3.2. Evidência Patrística

A tradição unânime dos Padres da Igreja — Papias, Irineu, Clemente, Orígenes — sustenta a primazia de Mateus. Marcos é descrito como um “intérprete de Pedro” e Lucas como um colaborador de Paulo. Nenhum desses testemunhos admite a existência de uma fonte Q ou sugere que Lucas tenha usado Marcos e Mateus simultaneamente¹⁰.

3.3. Evidência Textual

A análise comparativa mostra que Marcos frequentemente harmoniza e sintetiza o material de Mateus e Lucas, o que é mais coerente com sua dependência dos dois do que o oposto. A ausência de material exclusivo de Mateus e Lucas em Marcos também pode ser explicada por limitações práticas e teológicas do próprio autor¹¹.

3.4. Economia Explicativa

Ao rejeitar Q e afirmar a tradição histórica, a Hipótese dos Dois Evangelhos apresenta uma economia explicativa superior. John Wenham observa que essa hipótese “não exige nenhuma fonte hipotética e está em harmonia com todas as evidências históricas disponíveis”¹².

4. Comparação e Avaliação Crítica das Hipóteses

Para avaliar criticamente as principais teorias que procuram resolver o Problema Sinótico — a saber, a Hipótese das Duas Fontes, a proposta de Farrer-Goodacre e a Hipótese dos Dois Evangelhos —, é necessário considerar cinco critérios fundamentais: (1) a ordem proposta de composição dos evangelhos, (2) o uso ou não de fontes hipotéticas, (3) o apoio patrístico, (4) a coerência editorial dos evangelistas, e (5) a economia explicativa da hipótese.

Hipótese das Duas Fontes

Ordem proposta: Marcos → Mateus e Lucas.

Fonte hipotética: Sim, a fonte Q (não preservada nem citada historicamente).

Apoio patrístico: Nenhum; contradiz os testemunhos mais antigos da Igreja.

Coerência editorial: Problemas significativos; exige que Lucas tenha ignorado ou alterado extensamente o material de Mateus sem razões claras.

Economia explicativa: Fraca; baseia-se em múltiplas suposições e fontes não evidenciadas.

Hipótese de Farrer-Goodacre

Ordem proposta: Marcos → Mateus → Lucas.

Fonte hipotética: Não; rejeita a existência de Q.

Apoio patrístico: Nenhum; não encontra sustentação em documentos da tradição antiga.

Coerência editorial: Questionável; implica que Lucas reestruturou longas seções de Mateus, alterando o conteúdo e a ordem sem justificativa clara.

Economia explicativa: Moderada; simplifica em relação à teoria de Q, mas mantém dependência de reconstruções hipotéticas do processo redacional.

Hipótese dos Dois Evangelhos (Griesbach/Farmer)

Ordem proposta: Mateus → Lucas → Marcos.

Fonte hipotética: Não; baseia-se apenas nos evangelhos canônicos.

Apoio patrístico: Forte; alinhada com Papias, Irineu, Clemente de Alexandria e outros.

Coerência editorial: Alta; Marcos é entendido como um resumo de Mateus e Lucas, o que justifica sua estrutura mais breve e seletiva.

Economia explicativa: Elevada; não introduz fontes conjecturais e respeita a evidência histórica e literária disponível.

Dessa forma, observa-se que a Hipótese dos Dois Evangelhos, além de manter coerência com a tradição patrística e interna dos textos, oferece a explicação mais simples e historicamente sustentada para a dependência entre os evangelhos sinóticos. Sua menor aceitação na academia moderna reflete mais um deslocamento metodológico em direção ao modelo crítico-formal do século XIX do que uma real superioridade teórica das hipóteses concorrentes.

5. Considerações Finais

Portanto o Problema Sinótico permanece um desafio hermenêutico de primeira ordem. O presente autor argumenta que, embora a Hipótese das Duas Fontes e a proposta Farrer-Goodacre ofereçam soluções alternativas, ambas falham ao ignorar ou distorcer os testemunhos históricos mais antigos. A Hipótese dos Dois Evangelhos, ao contrário, se fundamenta na tradição patrística, evita entidades hipotéticas e apresenta uma solução mais coerente com os dados históricos e textuais. É, portanto, a hipótese mais fundamentada para responder ao enigma sinótico.

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Referências

1. EUSEBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica. Tradução de Arnaldo Piskorski. São Paulo: Paulus, 2001, Livro III, cap. 39, p. 197.

2. STREETER, B. H.. The Four Gospels: A Study of Origins. London: Macmillan, 1924, p. 150-152.

3. LINNEMANN, Eta. Is There a Synoptic Problem? Rethinking the Literary Dependence of the First Three Gospels. Grand Rapids: Baker Books, 1992, p. 102-105.

4. FARMER, William R. The Synoptic Problem: A Critical Analysis. Dillsboro, NC: Western North Carolina Press, 1976, p. 38-45.

5. GOODACRE, Mark. The Case Against Q: Studies in Markan Priority and the Synoptic Problem. Harrisburg: Trinity Press International, 2002, p. 27-34.

6. IRINEU DE LYON. Contra Heresias. In: ROUBY, Marie-Louise von Franz (Org.). Patrística – Os Padres da Igreja. Petrópolis: Vozes, 2005, Livro III, cap. 1, p. 158-159.

7. WENHAM, John. Redating Matthew, Mark and Luke: A Fresh Assault on the Synoptic Problem. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1992, p. 86-90.

8. KLOPPENBORG, John S. Q: The Earliest Gospel. Louisville: Westminster John Knox Press, 2008, p. 112-120.

9. DUNGAN, David Laird. A History of the Synoptic Problem: The Canon, the Text, the Composition and the Interpretation of the Gospels. New Haven: Yale University Press, 1999, p. 276-283.

10. BLACK, David Alan (Org.). Rethinking the Synoptic Problem. Grand Rapids: Baker Academic, 2001, p. 90-92.

11. CLEMENTE DE ALEXANDRIA. Citado em EUSEBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica. op. cit., Livro VI, cap. 14, p. 282.

12. WENHAM, John. Redating Matthew, Mark and Luke, op. cit., p. 116.










DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Novo Testamento pelo Seminário Bíblico de São Paulo/SP (FETSB); Mestre (M.A.) em Teologia e Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG). É teólogo, biblista, historiador e apologista cristão.

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