A figura do apóstolo Paulo é, ao mesmo tempo, central e complexa no Novo Testamento. Suas cartas, especialmente Gálatas e 1 Coríntios, delineiam um apóstolo inflexível quanto à justificação pela fé e à liberdade cristã. Contudo, sua participação num rito purificatório judaico em Atos 21, por sugestão de Tiago e dos presbíteros da igreja de Jerusalém, levanta questionamentos sobre sua coerência doutrinária. Seria essa atitude uma contradição teológica, ou uma expressão da sua estratégia missionária?
Neste artigo analisaremos biblicamente e teologicamente esse aparente "paradoxo" à luz do contexto histórico e literário das passagens, dialogando com estudiosos modernos sobre a natureza da missão paulina e sua relação com a Lei.
1. A Posição de Paulo em Gálatas: A Justificação sem a Lei
A Epístola aos Gálatas apresenta Paulo em sua postura mais veemente contra a imposição da Lei mosaica sobre cristãos gentios. Ele afirma categoricamente:
"Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo [...] porquanto pelas obras da lei nenhuma carne será justificada." (Gl 2:16)
Esse argumento é desenvolvido em oposição aos "judaizantes", que exigiam que gentios adotassem práticas como a circuncisão (Gl 5:2-6). Paulo chega a dizer que aqueles que se deixam circuncidar se desligam de Cristo (Gl 5:4). Sua autoridade apostólica é defendida com base em revelação direta e não em submissão a Jerusalém (Gl 1:11–12).
A crítica a Pedro em Antioquia (Gl 2:11-14) por se afastar dos gentios revela não apenas uma divergência prática, mas um ponto nevrálgico da teologia paulina: a comunhão entre judeus e gentios em Cristo não pode ser mediada pela Lei [1].
2. O Episódio de Atos 21: Concessão ou Contradição?
Em Atos 21:18-26, Paulo chega a Jerusalém e encontra Tiago e os presbíteros. Eles relatam que muitos judeus cristãos ouviram dizer que ele ensinava os judeus da diáspora a abandonar Moisés. Para demonstrar que isso era falso, sugerem que Paulo participe de um voto de purificação com quatro homens.
“Toma estes contigo, purifica-te com eles, e faze as despesas necessárias para que raspem a cabeça. E todos saberão que não é verdade aquilo de que foram informados a teu respeito.” (At 21:24)
Paulo aceita a sugestão, aparentemente sem resistência. À primeira vista, tal atitude pode soar como uma negação de sua insistência anterior de que práticas da Lei não são necessárias para os que estão em Cristo. Contudo, estudiosos apontam que Paulo não se opôs a práticas judaicas enquanto não fossem impostas como condição de salvação [2].
3. 1 Coríntios 9:19–22 — Flexibilidade Pastoral como Chave Hermenêutica
A chave interpretativa mais importante para compreender a atitude de Paulo em Atos 21 encontra-se em sua própria declaração em 1 Coríntios 9:
“Fiz-me como judeu para os judeus [...] fiz-me tudo para todos, para por todos os meios chegar a salvar alguns.” (1Co 9:20, 22)
Aqui, Paulo expressa um princípio missionário de contextualização, onde adapta sua conduta cultural às circunstâncias do público-alvo, sem comprometer os fundamentos do Evangelho. Ele reconhece que está “debaixo da Lei de Cristo” (1Co 9:21), o que indica um novo padrão ético-teológico, distinto da antiga Lei mosaica.
Essa passagem mostra que Paulo não via problema em observar costumes judaicos como forma de eliminar barreiras culturais, desde que isso não fosse confundido com a base da salvação [3].
4. Coerência Teológica e distinção entre judeus e gentios
Paulo mantém uma distinção constante entre judeus e gentios. Em Romanos 14–15, ele tolera diferenças culturais no modo de vida dos crentes. Em Atos 16:3, ele circuncida Timóteo por ser filho de judia, mas em Gálatas 2:3, se recusa a circuncidar Tito, grego. Esses dados apontam para uma teologia paulina que reconhece a liberdade cristã como princípio, mas exercida de maneira relacional e prudente. O gesto de Paulo em Atos 21, portanto, pode ser lido como expressão de amor pastoral, bom testemunho missional e não como concessão doutrinária [4].
5. A Tensão entre Atos e as Epístolas Paulinas
Alguns estudiosos veem em Atos uma versão mais conciliadora de Paulo, promovida por Lucas para enfatizar a unidade da igreja primitiva [5]. Contudo, outros autores como o presente autor defendem que a diferença é de perspectiva narrativa, não de conteúdo teológico. As epístolas mostram a teologia explícita de Paulo; Atos mostra sua ação concreta em contextos pastorais diversos. Assim, o que se observa é uma fidelidade teológica com flexibilidade missional.
Conclusão
Portanto como vimos a análise exegética e teológica dos textos de Gálatas, Atos 21 e 1 Coríntios 9 revela que não há contradição doutrinária entre os escritos e as ações de Paulo. Aparentes divergências se dissipam quando se considera o princípio paulino de adaptação cultural em prol da evangelização, sem renunciar ao conteúdo essencial do Evangelho. A atitude de Paulo em Jerusalém deve ser compreendida como um gesto de sabedoria pastoral, bom testemunho missional e reconciliação com a igreja-mãe, e não como uma recusa de suas convicções teológicas. Ele não abandonou a justificação pela fé; ele apenas a viveu com sensibilidade pastoral.
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Referências
[1] DUNN, James D. G. The Theology of Paul the Apostle. Grand Rapids: Eerdmans, 1998.
[2] BRUCE, F. F. Paul: Apostle of the Heart Set Free. Grand Rapids: Eerdmans, 1977.
[3] WRIGHT, N. T. Paul and the Faithfulness of God. Minneapolis: Fortress Press, 2013.
[4] SILVA, Moisés. Interpreting Galatians: Explorations in Exegetical Method. Grand Rapids: Baker Academic, 2001.
[5] BAUR, Ferdinand Christian. Paul the Apostle of Jesus Christ. Peabody: Hendrickson Publishers, 2003. (Reimpressão).