O Gênero Literário de Gênesis: Um Relato Histórico-Teológico em Prosa Elevada contra as Cosmogonias Míticas do Antigo Oriente Próximo





O livro de Gênesis ocupa posição fundacional tanto na literatura hebraica quanto na teologia bíblica. A questão do seu gênero literário — se poético, mítico, simbólico ou histórico — tem sido objeto de debate intenso na crítica moderna. Contudo, análise exegética, filológica e histórico-comparativa demonstra que o texto de Gênesis, especialmente nos capítulos 1–11, apresenta-se como prosa narrativa de caráter histórico-teológico, escrita de modo solene e ordenado, em contraste intencional com as cosmogonias míticas do Antigo Oriente Próximo (AOP). O autor bíblico, Moisés conforme defende o presente autor por questões exegéticas, não apenas narra os primórdios, mas corrige e refuta os mitos pagãos mediante uma forma literária prosaica e teologicamente racional.

1. Gênesis como Prosa Narrativa e não Poesia

Estudos de hebraístas e linguistas demonstram que Gênesis 1:1–2:3 não possui as marcas estruturais da poesia hebraica — métrica paralelística, ritmo binário ou tripartido, e paralelismo sintático formal — mas sim o fluxo narrativo característico da prosa elevada. Bruce Waltke observa que o texto “não contém paralelismos poéticos regulares, mas uma cadência rítmica que o eleva acima da prosa comum”[1]. Gordon Wenham, analisando o padrão verbal (com predominância de waw consecutivo e verbos finitos), conclui que o texto “é narrativa, e não poesia”[2]. Assim, Gênesis deve ser lido como relato histórico-teológico, com estilo litúrgico, mas não poético no sentido formal. A estrutura repetitiva — “E disse Deus…”, “E viu Deus…”, “Houve tarde e manhã…” — cria ritmo solene e teologicamente intencional, não musical ou mitológico. O autor utiliza paralelismo funcional, não estético, para reforçar o tema da ordem divina.

2. O Caráter Histórico-Teológico do Relato

O propósito de Gênesis transcende a mera cronologia dos eventos: o texto articula uma teologia da criação e da história. John H. Sailhamer enfatiza que o autor “escreve história teológica — isto é, relato factual interpretado à luz da revelação de Deus”[3]. O texto não busca uma cosmologia científica, mas descreve atos reais de Deus em linguagem compreensível, dentro da cosmovisão hebraica. A unidade entre Gênesis 1–11 (a pré-história) e 12–50 (a história patriarcal) demonstra continuidade de gênero: ambos usam a mesma sintaxe narrativa e a mesma estrutura genealógica - as Toledot (Genealogia, História). Nahum Sarna observa que “o autor vê Adão, Noé e Abraão não como figuras míticas, mas como personagens históricos que pertencem à mesma linha temporal”[4]. Essa continuidade literária é a base para considerar Gênesis integralmente como História Sagrada (historia salutis), e não mito.

3. O Contexto do Antigo Oriente Próximo: Contraponto e Correção

Comparações entre Gênesis e textos cosmogônicos do AOP — como o Enuma Elish babilônico e o Atrahasis acádico — revelam semelhanças superficiais e divergências teológicas profundas. John Walton argumenta que o autor de Gênesis “não escreve num vácuo, mas em diálogo com as concepções cosmogônicas do mundo antigo”[5]. Contudo, longe de copiá-las, o texto bíblico as subverte: elimina o politeísmo, a violência entre deuses pagãos e o caos como princípio criador. Como destaca Umberto Cassuto, “em lugar da luta cósmica, temos o verbo divino; em vez do acaso, propósito; em vez de deuses nascidos, um Deus eterno e único”[6]. Essa diferença se reflete na forma literária: as cosmogonias mesopotâmicas são compostas em versos mitopoéticos, com repetições ritualísticas e antropomorfismos divinos, enquanto Gênesis é prosa ordenada e racional, sem deificação dos elementos. Kenneth Kitchen observa que “a prosa sóbria de Gênesis é sem paralelo entre as narrativas cosmogônicas do Oriente Próximo”[7]. Logo, o gênero prosaico é também um veículo teológico de refutação: o autor escolhe deliberadamente a narrativa histórica, e não o mito, para afirmar a transcendência e racionalidade do Deus de Israel.

4. A Intenção Hermenêutica do Autor

O escritor de Gênesis escreve para ser entendido. A estrutura pedagógica e a cadência repetitiva demonstram intenção didática, não esotérica. Claus Westermann aponta que o texto é “para ser lido e proclamado na comunidade de fé, como relato das origens reais da criação e da aliança”[8]. A linguagem simbólica (árvore da vida, serpente, jardim, etc.) não anula a factualidade subjacente, mas serve de veículo teológico para comunicar verdades históricas. Conforme Gerhard von Rad, “a fé israelita exprime sua experiência histórica em forma narrativa, e não mítica”[9]. Assim, o simbolismo em Gênesis é teológico e revelacional, não alegórico ou fictício. A narrativa, portanto, se apresenta como história real com densidade simbólica — ou seja implica veracidade histórica factual dos eventos narrados na criação, o que explica sua força perene como fundamento da teologia bíblica.

5. Conclusão: Gênesis como Prosa Histórica-Teológica de Caráter Polêmico

Por conseguinte a análise literária, exegética e comparativa permite concluir que Gênesis é um relato em prosa elevada, histórico e teológico, escrito para comunicar a verdade histórica da criação e da aliança divina em contraste com as narrativas míticas do entorno cultural. O autor bíblico se apropria da forma narrativa da prosa — não da poesia mítica — para corrigir, refutar e substituir as cosmogonias pagãs, afirmando a racionalidade, bondade e soberania do Deus único. Portanto, Gênesis deve ser lido como história teológica solene, um documento fundacional que une fato e fé, evento e revelação. Seu estilo prosaico não diminui sua grandeza literária; ao contrário, expressa a transcendência do conteúdo em linguagem acessível e ordenada — um marco único na literatura antiga, onde teologia e história se fundem em forma narrativa e factual.

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Referências 

[1] WALTKE, Bruce K. Genesis: A Commentary. Grand Rapids: Zondervan, 2001. p. 56–58.

[2] WENHAM, Gordon J. Genesis 1–15. (Word Biblical Commentary). Dallas: Word Books, 1987. p. 10–15.

[3] SAILHAMER, John H. The Pentateuch as Narrative: A Biblical-Theological Commentary. Grand Rapids: Zondervan, 1992. p. 25–27.

[4] SARNA, Nahum M. Genesis: The Traditional Hebrew Text with the New JPS Translation. (The JPS Torah Commentary). Philadelphia: Jewish Publication Society, 1989. p. xvi–xviii.

[5] WALTON, John H. Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament: Introducing the Conceptual World of the Hebrew Bible. Grand Rapids: Baker Academic, 2006. p. 180–185.

[6] CASSUTO, Umberto. A Commentary on the Book of Genesis, Part I: From Adam to Noah. Jerusalem: Magnes Press, 1961. p. 5–7.

[7] KITCHEN, Kenneth A. On the Reliability of the Old Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 2003. p. 424–426.

[8] WESTERMANN, Claus. Genesis 1–11: A Commentary. Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1984. p. 47–48.

[9] VON RAD, Gerhard. Genesis: A Commentary. (Old Testament Library). Philadelphia: Westminster Press, 1961. p. 53–55.


DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Estudos Bíblicos e Exegese pelo Seminário Bíblico de São Paulo (FETSB); Mestre (M.A.) em Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada; Bacharel (B.D.) em Divindade pela Faculdade Teológica Internacional das Assembléias de Deus (FATIAD) e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG).É historiador, biblista, teólogo e apologista cristão evangélico.

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