Neste breve estudo examinaremos a profecia das setenta semanas de Daniel (Dn 9:24–27) sob a perspectiva do futurismo moderado, defendendo que o texto descreve um programa divino de 490 anos para Israel e a Igreja, culminando na manifestação do Messias e em eventos escatológicos ainda futuros. Argumenta-se que as “semanas” são ciclos de sete anos, conforme o modelo sabático de Levítico 25, e que a última semana se refere a um período final de tribulação e rompimento de aliança liderado pelo Anticristo. A leitura preterista radical é criticada por não satisfazer as exigências linguísticas, cronológicas e teológicas do texto. Conclui-se que o futurismo moderado oferece a interpretação mais equilibrada e coerente com a totalidade das Escrituras.
1. Introdução
A profecia de Daniel 9:24–27 é um dos textos mais complexos e centrais da escatologia bíblica. Gabriel anuncia a Daniel um plano divino de setenta semanas para o povo de Israel e sua cidade santa, visando a consumação da redenção e o estabelecimento da justiça eterna. Historicamente, o texto tem sido interpretado de quatro modos principais: preterista, historicista, futurista e idealista. O futurismo moderado, porém, tem se destacado por harmonizar a literalidade do texto com a teologia redentiva progressiva das Escrituras, evitando os extremos tanto do preterismo radical quanto do dispensacionalismo rígido [1].
2. Fundamento hermenêutico e contexto histórico
Daniel escreve durante o exílio babilônico (c. 539 a.C.), após meditar nas profecias de Jeremias sobre os setenta anos de cativeiro (Dn 9:2). A resposta de Deus, por meio de Gabriel, amplia o horizonte profético: não apenas setenta anos, mas setenta “semanas” de anos são determinadas para a restauração completa de Israel. A palavra hebraica usada é shavuim (שָׁבֻעִים), plural de shavua, que significa literalmente “setes”. No contexto veterotestamentário, esse termo pode referir-se tanto a semanas de dias quanto a semanas de anos [2].
3. As “semanas” como ciclos de anos
A interpretação das “semanas” como períodos de sete anos encontra base sólida no sistema sabático de Levítico 25:3–8, onde Deus ordena ciclos de seis anos de cultivo e um de descanso. Esse mesmo texto fala explicitamente em “sete semanas de anos” (v. 8), equivalentes a 49 anos — o período que antecedia o Jubileu. Portanto, Daniel, conhecedor da Torá, teria entendido “setenta semanas” como setenta conjuntos de sete anos, totalizando 490 anos. Essa interpretação é amplamente sustentada por exegetas evangélicos como Edward J. Young, Gleason Archer e Leon Wood [3].
4. Estrutura das setenta semanas
O anjo divide o período em três partes (Dn 9:25–27):
1. Sete semanas (49 anos) — tempo de reconstrução de Jerusalém.
2. Sessenta e duas semanas (434 anos) — até a vinda do Ungido.
3. Uma semana final (7 anos) — caracterizada por uma aliança, sua ruptura e desolação.
Os 69 períodos (483 anos) levam, dependendo do decreto tomado como início (Artaxerxes em 445 a.C. ou 457 a.C.), até o tempo do ministério e morte de Cristo [4]. O Ungido é “cortado” (v. 26), cumprindo-se na crucificação, e após isso Jerusalém é destruída em 70 d.C. — o que se encaixa até aqui de modo literal e histórico.
5. A lacuna profética e a 70ª semana
O v. 26 indica um intervalo entre a 69ª e a 70ª semana — “depois das sessenta e duas semanas será cortado o Ungido... e o povo de um príncipe destruirá a cidade”. A conjunção “depois” (acharê) implica um lapso temporal indeterminado. Esse intervalo corresponde ao tempo da Igreja, o mistério oculto não revelado no Antigo Testamento (Ef 3:5–6), mas introduzido entre a rejeição do Messias e a consumação final. John Walvoord e J. Dwight Pentecost argumentam que essa lacuna é teologicamente necessária para manter a distinção entre Israel e a Igreja (O Israel Espiritual) dentro do plano redentivo de Deus [5].
6. O “fará cessar o sacrifício e a oferta” (Dn 9:27)
6.1. O texto e sua tensão interpretativa
A 70ª semana descreve um governante que firmará uma aliança com muitos por sete anos, mas a romperá na metade, “fazendo cessar o sacrifício e a oferta”. Essa frase tem gerado intenso debate entre literalistas e simbólicos.
6.2. Interpretação futurista literal
O futurismo clássico entende que haverá um Terceiro Templo literal em Jerusalém, onde o culto judaico será restaurado e interrompido pelo Anticristo, conforme 2 Tessalonicenses 2:4 e Mateus 24:15. Arno Gaebelein e Charles Ryrie sustentam que essa leitura preserva a coerência literal da profecia e conecta-se ao “homem do pecado” que se assenta no templo de Deus [6].
6.3. Interpretação futurista moderada
A abordagem moderada, contudo, vê o foco de Daniel 9:27 não na reconstrução física de um templo, mas na ruptura espiritual de uma aliança e na supressão da verdadeira adoração. Autores como Robert L. Saucy e Craig Blaising enfatizam que “sacrifício e oferta” podem ser metáforas cultuais da adoração legítima ao Deus verdadeiro (cf. Os 6:6; Sl 51:17). Assim, “fará cessar o sacrifício” seria uma referência à perseguição religiosa e à apostasia global, não necessariamente ao término de rituais animais. Essa leitura é reforçada por 2 Tessalonicenses 2:4, onde o “templo de Deus” é interpretado como a comunidade dos crentes (1Co 3:16; Ef 2:21), e por Apocalipse 13, que descreve um sistema mundial de adoração forçada ao Anticristo [7].
7. Crítica à interpretação preterista radical
O preterismo radical, que vê todo o cumprimento da profecia em eventos do primeiro século, particularmente na destruição de Jerusalém em 70 d.C., falha em vários níveis:
1. Linguístico — ignora a natureza progressiva e escatológica de “setenta semanas” como shavuot shanim (semanas de anos).
2. Teológico — reduz a consumação da justiça eterna (Dn 9:24) a um evento histórico incompleto.
3. Escatológico — não explica satisfatoriamente o personagem futuro que “faz cessar o sacrifício” e traz desolação, o que se encaixa melhor com o Anticristo ainda por vir [8].
Como observa Leon Wood, “a profecia vai além da destruição de Jerusalém; ela se projeta até o fim da história humana, quando a justiça eterna será finalmente estabelecida”[9].
8. Síntese teológica
Daniel 9:24–27, portanto, revela uma estrutura temporal que abarca:
O plano de redenção centrado no Messias (as 69 semanas);
A era da Igreja (o intervalo profético);
E o juízo final (a 70ª semana).
O “Ungido cortado” é Cristo; o “povo do príncipe que há de vir” é Roma; e o “príncipe” futuro é o Anticristo, o líder final de um sistema mundial de rebelião.
A profecia une passado, presente e futuro sob o eixo da soberania divina, mostrando que o propósito de Deus avança em direção ao estabelecimento de Seu Reino eterno.
9. Conclusão
Portanto a análise textual, histórica e teológica confirma que a interpretação das setenta semanas como semanas de anos é biblicamente fundamentada em Levítico 25, e que o futurismo moderado fornece a leitura mais coerente com o cânon das Escrituras. O preterismo radical, ao limitar a profecia a 70 d.C., falha em considerar o escopo escatológico de Daniel e o testemunho do Novo Testamento. Na visão futurista moderada, o “fará cessar o sacrifício e a oferta” representa não apenas um rompimento político, mas uma tentativa final de suprimir a adoração verdadeira, culminando com a vinda gloriosa de Cristo para consumar a justiça eterna (Dn 9:24). Assim, o texto de Daniel continua sendo não apenas um mapa profético, mas também um lembrete da fidelidade de Deus à Sua Palavra e ao Seu povo.
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NOTAS
[1] Walvoord, John F. Daniel: The Key to Prophetic Revelation. Moody Press, 1971.
[2] Keil, C. F., & Delitzsch, F. Commentary on the Old Testament, Vol. 9: Daniel. Eerdmans, 1986.
[3] Archer, Gleason L. Daniel. In: Expositor’s Bible Commentary, Vol. 7. Zondervan, 1985.
[4] Wood, Leon J. A Commentary on Daniel. Zondervan, 1973.
[5] Pentecost, J. Dwight. Things to Come: A Study in Biblical Eschatology. Zondervan, 1958.
[6] Ryrie, Charles C. The Basis of the Premillennial Faith. Loizeaux Brothers, 1953.
[7] Blaising, Craig A. & Bock, Darrell L. Progressive Dispensationalism. Baker Academic, 1993.
[8] Feinberg, Charles. Daniel: The Man and His Visions. Moody Press, 1981.
[9] Wood, Leon J., A Commentary on Daniel, op. cit.
