A Falha Metodológica da Prioridade de Marcos e a Superioridade Explanatória da Hipótese dos Dois Evangelhos: Uma Análise Crítica Sobre o Problema Sinótico

 



1. O Problema Sinótico

Poucos temas são tão persistentes e complexos nos estudos do Novo Testamento quanto o chamado problema sinótico. Por que Mateus, Marcos e Lucas são tão parecidos e, ao mesmo tempo, tão diferentes? No século XIX, estudiosos alemães da alta crítica, como Karl Lachmann revolucionou os estudos dos evangelhos sinóticos ao concluir que Marcos era o Evangelho mais antigo, e que Mateus e Lucas dependiam dele literariamente. Essa tese — hoje dominante — é vista por muitos como quase incontestável.
Entretanto, a análise metodológica por trás dessa conclusão contém fragilidades profundas. Como demonstram os proponentes da Hipótese dos Dois Evangelhos (H2E) — também conhecida como Hipótese de Griesbach — a solução de Lachmann parece menos sólida do que aparenta. Neste breve estudo argumentaremos que Lachmann cometeu um erro metodológico estrutural e que a H2E fornece um modelo explicativo mais simples, mais histórico e mais fiel aos dados literários.

2. A Proposta de Lachmann: Um Método Brilhante Aplicado de Forma Equivocada

Karl Lachmann (1793–1851) filólogo e classista alemão aplicou aos Evangelhos o método genealógico que havia desenvolvido para reconstruir textos clássicos. Seu raciocínio é conhecido: ao comparar a ordem dos episódios nos três Evangelhos, observou que Mateus e Lucas tendem a seguir Marcos quando os três caminham juntos; mas Mateus e Lucas não seguem sempre um ao outro. A partir disso, concluiu que Marcos seria a fonte comum e, portanto, o primeiro Evangelho.
A simplicidade dessa tese lhe deu força. Entretanto, como apontam autores posteriores, essa interpretação está construída em sobreposições e pressupostos não demonstrados.

3. O Primeiro Problema: Transpor Um Método Inadequado

O método de Lachmann foi criado para corrigir linhagens de manuscritos textuais. Mas os Evangelhos não surgiram de uma cadeia linear: nasceram de tradições múltiplas, parcialmente orais, transmitidas em comunidades com propósitos litúrgicos e catequéticos. Orchard observa que aplicar a filologia clássica a textos evangélicos é metodologicamente inadequado, pois supõe uma transmissão textual estável e linear que jamais existiu [1]. A raiz do problema está na tentativa de encaixar os Evangelhos em um modelo que não corresponde à natureza de sua composição.

4. O Segundo Problema: A Circularidade da Prioridade de Marcos

Como nota William R. Farmer, Lachmann pressupôs que Marcos preserva a forma mais antiga da tradição, mas nunca demonstrou essa primitividade [2]. Assim, ao observar que Mateus e Lucas se alinham frequentemente à ordem de Marcos, Lachmann lê isso como evidência de dependência literária — quando isso pode ser efeito secundário de outro processo. Essa crítica expõe o cerne do problema: a tese de Lachmann não se apoia em provas, mas em pressupostos interpretativos. Seu argumento é circular: assume a primitividade de Marcos para explicar a ordem sinótica e usa a ordem sinótica para provar a primitividade de Marcos.

5. O Terceiro Problema: A “Ordem dos Episódios” Como Falso Critério Científico

Lachmann trata a ordem narrativa dos Evangelhos como uma pista clara de dependência. Contudo:

escritores antigos reorganizavam material livremente, como o próprio Lucas declara no prólogo (Lc 1:1–4) — argumento frequentemente lembrado por Farmer [3];

divergências na ordem não demonstram independência, mas podem refletir decisões literárias ou teológicas;

Marcos, como sugere Orchard, pode ter organizado o material para uso catequético-litúrgico, e não para preservar ordem histórica primitiva [4];

Dungan observa que Marcos pode ocupar uma posição “intermediária” simplesmente porque é conflativo, isto é, porque combina Mateus e Lucas [5].

Se Marcos é uma síntese inteligente dos dois, então é natural que ele às vezes coincida com Mateus, às vezes com Lucas, e às vezes apresente uma ordem própria. Nesse caso, a “ordem intermediária” que impressionou Lachmann seria apenas o resultado final de um processo redacional, não a fonte original dos outros dois Evangelhos.

6. A Hipótese dos Dois Evangelhos: Um Modelo Mais Simples e Mais Histórico

A H2E propõe:

1. Mateus escreveu primeiro.

2. Lucas usou Mateus para compor seu Evangelho.

3. Marcos usou Mateus e Lucas como fontes, produzindo um resumo narrativo.

Essa hipótese, embora minoritária hoje, possui vantagens substanciais.

6.1. Explicação literária mais coerente

A H2E explica de maneira direta:

por que Marcos é mais curto;

por que Marcos contém linguagem mais vívida e menos arranjada;

por que Marcos às vezes segue Mateus e às vezes Lucas;

os “acordos menores” entre Mateus e Lucas contra Marcos;

o fato de Marcos omitir grande parte dos discursos e parábolas.

Nada disso precisa de hipóteses auxiliares como a fonte Q, inexistente em qualquer testemunho histórico.

6.2. Fidelidade ao Testemunho Patrístico

Autores antigos como Papias, Irineu e Clemente afirmam ou pressupõem a prioridade de Mateus. Para Dungan, uma teoria sinótica deve explicar esse testemunho, não ignorá-lo por considerações metodológicas estreitas [6]. A prioridade de Marcos exige reinterpretar ou descartar as fontes mais antigas; a H2E, ao contrário, é perfeitamente compatível com elas.

6.3. Redação de Lucas Mais Inteligível

A dependência de Lucas em relação a Mateus — rejeitada na teoria das duas fontes — torna inteligível:

a seleção de material lucano,

a estrutura narrativa,

a organização dos discursos,

e os paralelismos específicos.

A prioridade de Marcos torna a redação lucana complexa e difícil de justificar, exigindo um Lucas que ora copia Marcos quase literalmente, ora o ignora por completo, ora reorganiza o material sem motivo aparente.

7. A Falha Fatal de Lachmann

O problema central é claro: Lachmann baseou sua tese em um único critério frágil — a ordem dos episódios — e interpretou essa ordem como evidência inequívoca de prioridade literária. Mas a ordem pode surgir de:

síntese,

harmonização,

reorganização litúrgica,

interesses catequéticos e teológicos,

ou combinações deliberadas.

Lachmann leu o fenômeno de um único ângulo, e por isso chegou a uma conclusão que não corresponde necessariamente ao processo real de composição dos Evangelhos.

8. Conclusão: A Força Explicativa da Hipótese dos Dois Evangelhos

Ao reexaminar a metodologia de Lachmann e contrastá-la com as críticas dos proponentes da H2E, torna-se evidente que:

a prioridade de Marcos se apoia mais em pressupostos do que em dados;

a análise de Lachmann é circular e interpreta a ordem sinótica de modo unidimensional;

a H2E explica melhor o padrão de semelhanças e diferenças entre os Evangelhos;

a H2E dialoga melhor com o testemunho histórico antigo;

e oferece uma solução mais simples, mais coerente e mais fiel aos dados literários.

Portanto assim, mesmo sendo minoritária na academia contemporânea, a H2E permanece uma alternativa robusta e, em vários aspectos, superior à explicação lachmanniana. A tradição sinótica, ao que parece, encontra na sequência Mateus → Lucas → Marcos uma explicação mais natural, mais histórica e mais abrangente.

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Referências

[1] ORCHARD, Bernard. The Order of the Synoptics: Why Three Synoptic Gospels? Manchester: Golden Dome Publications, 1987.

[2] FARMER, William R. The Synoptic Problem: A Critical Analysis. Dillsboro: Western North Carolina Press, 1976.

[3] FARMER, William R. Jesus and the Gospel: Tradition, Scripture and Canon. Philadelphia: Fortress Press, 1982.

[4] ORCHARD, Bernard; RILEY, Harold. The Order of the Synoptics. Macon: Mercer University Press, 1987.

[5] DUNGAN, David L. A History of the Synoptic Problem: The Canon, the Text, the Composition, and the Interpretation of the Gospels. New York: Doubleday, 1999.

[6] DUNGAN, David L. The Sayings of Jesus in the Churches of Paul: The Use of the Synoptic Tradition in the Regulation of Early Church Life. Philadelphia: Fortress Press, 1971.

DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Estudos Bíblicos e Exegese pelo Seminário Bíblico de São Paulo (FETSB); Mestre (M.A.) em Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada; Bacharel (B.D.) em Divindade pela Faculdade Teológica Internacional das Assembléias de Deus (FATIAD) e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG).É historiador, biblista, teólogo e apologista cristão evangélico.

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