1. O Problema Sinótico
2. A Proposta de Lachmann: Um Método Brilhante Aplicado de Forma Equivocada
3. O Primeiro Problema: Transpor Um Método Inadequado
O método de Lachmann foi criado para corrigir linhagens de manuscritos textuais. Mas os Evangelhos não surgiram de uma cadeia linear: nasceram de tradições múltiplas, parcialmente orais, transmitidas em comunidades com propósitos litúrgicos e catequéticos. Orchard observa que aplicar a filologia clássica a textos evangélicos é metodologicamente inadequado, pois supõe uma transmissão textual estável e linear que jamais existiu [1]. A raiz do problema está na tentativa de encaixar os Evangelhos em um modelo que não corresponde à natureza de sua composição.
4. O Segundo Problema: A Circularidade da Prioridade de Marcos
Como nota William R. Farmer, Lachmann pressupôs que Marcos preserva a forma mais antiga da tradição, mas nunca demonstrou essa primitividade [2]. Assim, ao observar que Mateus e Lucas se alinham frequentemente à ordem de Marcos, Lachmann lê isso como evidência de dependência literária — quando isso pode ser efeito secundário de outro processo. Essa crítica expõe o cerne do problema: a tese de Lachmann não se apoia em provas, mas em pressupostos interpretativos. Seu argumento é circular: assume a primitividade de Marcos para explicar a ordem sinótica e usa a ordem sinótica para provar a primitividade de Marcos.
5. O Terceiro Problema: A “Ordem dos Episódios” Como Falso Critério Científico
Lachmann trata a ordem narrativa dos Evangelhos como uma pista clara de dependência. Contudo:
escritores antigos reorganizavam material livremente, como o próprio Lucas declara no prólogo (Lc 1:1–4) — argumento frequentemente lembrado por Farmer [3];
divergências na ordem não demonstram independência, mas podem refletir decisões literárias ou teológicas;
Marcos, como sugere Orchard, pode ter organizado o material para uso catequético-litúrgico, e não para preservar ordem histórica primitiva [4];
Dungan observa que Marcos pode ocupar uma posição “intermediária” simplesmente porque é conflativo, isto é, porque combina Mateus e Lucas [5].
Se Marcos é uma síntese inteligente dos dois, então é natural que ele às vezes coincida com Mateus, às vezes com Lucas, e às vezes apresente uma ordem própria. Nesse caso, a “ordem intermediária” que impressionou Lachmann seria apenas o resultado final de um processo redacional, não a fonte original dos outros dois Evangelhos.
6. A Hipótese dos Dois Evangelhos: Um Modelo Mais Simples e Mais Histórico
A H2E propõe:
1. Mateus escreveu primeiro.
2. Lucas usou Mateus para compor seu Evangelho.
3. Marcos usou Mateus e Lucas como fontes, produzindo um resumo narrativo.
Essa hipótese, embora minoritária hoje, possui vantagens substanciais.
6.1. Explicação literária mais coerente
A H2E explica de maneira direta:
por que Marcos é mais curto;
por que Marcos contém linguagem mais vívida e menos arranjada;
por que Marcos às vezes segue Mateus e às vezes Lucas;
os “acordos menores” entre Mateus e Lucas contra Marcos;
o fato de Marcos omitir grande parte dos discursos e parábolas.
Nada disso precisa de hipóteses auxiliares como a fonte Q, inexistente em qualquer testemunho histórico.
6.2. Fidelidade ao Testemunho Patrístico
Autores antigos como Papias, Irineu e Clemente afirmam ou pressupõem a prioridade de Mateus. Para Dungan, uma teoria sinótica deve explicar esse testemunho, não ignorá-lo por considerações metodológicas estreitas [6]. A prioridade de Marcos exige reinterpretar ou descartar as fontes mais antigas; a H2E, ao contrário, é perfeitamente compatível com elas.
6.3. Redação de Lucas Mais Inteligível
A dependência de Lucas em relação a Mateus — rejeitada na teoria das duas fontes — torna inteligível:
a seleção de material lucano,
a estrutura narrativa,
a organização dos discursos,
e os paralelismos específicos.
A prioridade de Marcos torna a redação lucana complexa e difícil de justificar, exigindo um Lucas que ora copia Marcos quase literalmente, ora o ignora por completo, ora reorganiza o material sem motivo aparente.
7. A Falha Fatal de Lachmann
O problema central é claro: Lachmann baseou sua tese em um único critério frágil — a ordem dos episódios — e interpretou essa ordem como evidência inequívoca de prioridade literária. Mas a ordem pode surgir de:
síntese,
harmonização,
reorganização litúrgica,
interesses catequéticos e teológicos,
ou combinações deliberadas.
Lachmann leu o fenômeno de um único ângulo, e por isso chegou a uma conclusão que não corresponde necessariamente ao processo real de composição dos Evangelhos.
8. Conclusão: A Força Explicativa da Hipótese dos Dois Evangelhos
Ao reexaminar a metodologia de Lachmann e contrastá-la com as críticas dos proponentes da H2E, torna-se evidente que:
a prioridade de Marcos se apoia mais em pressupostos do que em dados;
a análise de Lachmann é circular e interpreta a ordem sinótica de modo unidimensional;
a H2E explica melhor o padrão de semelhanças e diferenças entre os Evangelhos;
a H2E dialoga melhor com o testemunho histórico antigo;
e oferece uma solução mais simples, mais coerente e mais fiel aos dados literários.
Portanto assim, mesmo sendo minoritária na academia contemporânea, a H2E permanece uma alternativa robusta e, em vários aspectos, superior à explicação lachmanniana. A tradição sinótica, ao que parece, encontra na sequência Mateus → Lucas → Marcos uma explicação mais natural, mais histórica e mais abrangente.
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Referências
[1] ORCHARD, Bernard. The Order of the Synoptics: Why Three Synoptic Gospels? Manchester: Golden Dome Publications, 1987.
[2] FARMER, William R. The Synoptic Problem: A Critical Analysis. Dillsboro: Western North Carolina Press, 1976.
[3] FARMER, William R. Jesus and the Gospel: Tradition, Scripture and Canon. Philadelphia: Fortress Press, 1982.
[4] ORCHARD, Bernard; RILEY, Harold. The Order of the Synoptics. Macon: Mercer University Press, 1987.
[5] DUNGAN, David L. A History of the Synoptic Problem: The Canon, the Text, the Composition, and the Interpretation of the Gospels. New York: Doubleday, 1999.
[6] DUNGAN, David L. The Sayings of Jesus in the Churches of Paul: The Use of the Synoptic Tradition in the Regulation of Early Church Life. Philadelphia: Fortress Press, 1971.
