Neste estudo examinaremos criticamente a relação entre a cronologia histórica do cristianismo primitivo, os testemunhos patrísticos e os dados internos do Novo Testamento, argumentando que a posição da Hipótese das Duas Fontes que afirma a prioridade de Marcos é historicamente improvável. A partir de análises de historiadores e exegetas que trabalham com a Hipótese dos Dois Evangelhos (H2E), defende-se que a ordem Mateus → Lucas → Marcos não apenas é possível, mas emerge como a mais coerente quando se integra evidência histórica, patrística e literária. Conclui-se que a prioridade de Marcos repousa sobre pressupostos literários do século XIX, enquanto a H2E se harmoniza mais naturalmente com o conjunto total das fontes disponíveis.
1. Introdução
A discussão moderna do problema sinótico tem sido dominada pela hipótese da prioridade de Marcos, consolidada a partir de Karl Lachmann filologo alemão. Entretanto, o estudo histórico-cronológico do século I revela um cenário que desafia seriamente a plausibilidade de Marcos como o Evangelho mais antigo. Proponentes contemporâneos da Hipótese dos Dois Evangelhos — como William R. Farmer, Bernard Orchard e David Dungan — demonstram que o paradigma dominante carece de sustentação histórica robusta. Para eles, a cronologia interna do Novo Testamento, aliada à tradição patrística, aponta para uma ordem invertida: Mateus primeiro, seguido por Lucas, e Marcos por último [1]. O objetivo deste ensaio é demonstrar que, quando se leva em conta os dados históricos, a H2E emerge não apenas como uma alternativa literária, mas como a reconstrução historicamente mais consistente da formação dos Evangelhos sinóticos.
2. Marcos e a Década de 60: A Presença com Pedro e a Tradição Romana
A evidência de 1 Pedro 5:13, que associa Marcos à atividade de Pedro em Roma, tem sido reconhecida como um elemento significativo na cronologia evangelística. Independentemente do debate sobre a autenticidade total da carta, é amplamente aceito que ela reflete uma tradição muito antiga acerca da parceria ministerial entre Pedro e Marcos [2]. A tradição patrística do século II — preservada por Papias, Clemente de Alexandria e Irineu — afirma de forma consistente que Marcos escreveu após as pregações de Pedro em Roma, muitas vezes vinculando a composição ao período imediatamente posterior à morte do apóstolo [3]. Se Pedro morreu durante a perseguição de Nero (c. 64–67 d.C.), e Marcos compôs seu Evangelho após esse evento ou enquanto atuava em Roma nesse período, a data provável de Marcos se situa entre 64 e 70 d.C.. Isso posiciona Marcos como o Evangelho mais tardio, contrariando diretamente a tese da prioridade de Marcos.
3. A Datação de Lucas–Atos: Um Ponto Decisivo para a Cronologia Sinótica
A maioria dos historiadores reconhece que Atos dos Apóstolos termina de maneira abrupta, com Paulo vivo em prisão domiciliar em Roma, sem mencionar:
seu martírio (64–67),
o martírio de Pedro,
a perseguição de Nero (64),
o martírio de Tiago, O Justo (62),
a revolta judaica (66–70),
ou a destruição do Templo (70).
A omissão desses eventos — todos de extrema relevância — sugere fortemente que Atos foi concluído antes de 62 d.C.. Essa conclusão tem sido aceita inclusive por acadêmicos moderados na crítica histórica [4]. Como Lucas afirma explicitamente que seu Evangelho precede Atos (At 1:1), a data do Evangelho de Lucas deve recuar para a segunda metade da década de 50 d.C. Se Lucas foi escrito antes de Atos, e Atos antes dos martírios de Pedro e Paulo, então:
Lucas é anterior a Marcos, não posterior.
Isto já elimina a prioridade de Marcos como possibilidade cronológica.
4. O Evangelho de Mateus como Obra Judaica pré-70
A caracterização profunda e integrada de Mateus com o judaísmo do Segundo Templo é um dos argumentos mais fortes para sua antiguidade. Elementos como:
referências ao altar e à prática sacrificial (Mt 5:23), ausência de explicações sobre costumes judaicos, forte concentração na missão às “ovelhas perdidas de Israel”, e uma cristologia moldada dentro da matriz sinagogal, indicam um contexto anterior à destruição de Jerusalém em 70 d.C.
Além disso, o testemunho unânime dos Pais da Igreja — Papias, Irineu e Eusébio — afirmam que Mateus escreveu primeiro, e o fez para crentes judeus [5]. Tal unanimidade literária antiga não pode ser descartada sem argumentos históricos fortes, e a hipótese da prioridade de Marcos frequentemente o faz com base apenas em modelos literários, não em evidências diretas. Portanto, uma data para Mateus entre 50–60 d.C. é historicamente plausível.
5. A Falha Histórica da Prioridade de Marcos
Quando os três dados são colocados lado a lado:
1. Mateus nos anos 50,
2. Lucas nos anos 50–60,
3. Marcos após 64, a conclusão histórica é inevitável:
Marcos não pode ser anterior a Mateus e Lucas.
Isso significa que:
Mateus não depende de Marcos, Lucas não depende de Marcos, e Marcos surge como uma síntese posterior, tal como afirmado pela H2E.
Orchard interpreta Marcos como uma “edição de Roma” de Mateus e Lucas, produzida para fins pastorais e catequéticos [6]. Dungan argumenta que Marcos se encontra numa posição intermediária entre os outros dois precisamente porque é conflativo, não primitivo [7]. Farmer reforça que a preferência moderna pela prioridade de Marcos deriva de pressupostos filosóficos do século XIX, não de evidências históricas demonstráveis [8].
6. A Superioridade Histórica da Hipótese dos Dois Evangelhos
A ordem Mateus → Lucas → Marcos explica de forma natural:
os acordos menores entre Mateus e Lucas contra Marcos, a ausência de Q, a posição conflativa de Marcos, a dependência literária observável entre Mateus e Lucas, a tradição patrística, e a cronologia das décadas de 50 e 60.
A hipótese das duas fontes (Marcos + Q), ao contrário, exige:
um documento inexistente (Q), a independência total entre Mateus e Lucas (historicamente improvável), e uma datação tardia de Mateus e Lucas contra toda a evidência cronológica interna.
7. Conclusão
Portanto a análise histórica integrada — cronologia neotestamentária, tradições patrísticas e coerência literária — indica que a prioridade de Marcos depende de pressupostos frágeis e metodologias literárias do século XIX, não de dados históricos verificáveis. Quando se respeita a evidência histórica disponível, a sequência:
Mateus → Lucas → Marcos
surge como a mais coerente, mais unificada e mais consistente com as fontes antigas.
A Hipótese dos Dois Evangelhos, portanto, não apenas permanece viável, mas se apresenta como a reconstrução historicamente mais forte do processo sinótico.
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Referências
1. FARMER, William R. The Synoptic Problem: A Critical Analysis. Dillsboro: Western North Carolina Press, 1976.
2. BROWN, Raymond. Introduction to the New Testament Christology. New York: Paulist Press, 1994.
3. EUSÉBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica. Livro III.
4. MARSHALL, I. Howard. Acts: An Introduction and Commentary. Downers Grove: IVP Academic, 1980.
5. IRINEU DE LIÃO. Contra as Heresias. III.1.1.
6. ORCHARD, Bernard; RILEY, Harold. The Order of the Synoptics. Macon: Mercer University Press, 1987.
7. DUNGAN, David L. A History of the Synoptic Problem. New York: Doubleday, 1999.
8. FARMER, William R. Jesus and the Gospel: Tradition, Scripture and Canon. Philadelphia: Fortress Press, 1982.
