A Referência Indireta a Jesus em Suetônio: Uma Análise Histórica

 


A Referência Indireta a Jesus em Suetônio: Uma Análise Histórica


A investigação sobre os testemunhos extrabíblicos acerca de Jesus de Nazaré tem ocupado um papel relevante na historiografia moderna, sobretudo no âmbito da pesquisa sobre o cristianismo nascente. Entre esses testemunhos, destaca-se a menção feita por Suetônio (Gaius Suetonius Tranquillus), historiador romano do século II, na biografia do imperador Cláudio em sua obra De Vita Caesarum. Em Cláudio 25.4, o autor escreve:

  -  “Iudaeos impulsore Chresto assidue tumultuantis Roma expulit.”

(“Expulsou de Roma os judeus que, por instigação de Chrestus, continuamente provocavam tumultos.”)

Esse registro tem gerado debates intensos entre estudiosos quanto à identidade de “Chrestus”. Este artigo argumenta que se trata de uma referência indireta a Jesus Cristo, e que tal menção corresponde ao episódio descrito em Atos 18:2, onde é narrada a expulsão de judeus de Roma por ordem de Cláudio. A análise abordará o contexto histórico, a problemática filológica do nome “Chrestus”, os dados neotestamentários e o diálogo com interpretações acadêmicas.

1. O problema filológico: “Chrestus” como “Christus”

O termo “Chrestus”, na passagem de Suetônio, é foneticamente próximo ao grego “Christos” (Χριστός), que significa “Ungido”, título atribuído a Jesus pelos primeiros cristãos. Em latim vulgar, a pronúncia de “Chrestus” e “Christus” era muitas vezes indistinguível, o que pode explicar o uso da forma corrompida por parte de Suetônio [1].

A compreensão dessa variação fonética é essencial para a interpretação do texto. Vários autores, como James D. G. Dunn, sustentam que “Chrestus” é uma corruptela ou grafia vulgar de “Christus”, resultado do desconhecimento do significado teológico do termo por parte de Suetônio [2]. Além disso, a forma “Chrestus” aparece em inscrições da época referindo-se tanto a escravos quanto a libertos, o que reforça a tese de que o nome era comum, mas que, nesse caso específico, foi mal interpretado como se fosse uma pessoa presente em Roma, quando na verdade se tratava de um personagem que já havia morrido décadas antes.

2. O contexto histórico da expulsão dos judeus

A passagem de Suetônio encontra forte paralelismo com Atos 18:2, onde se lê:

  - “Encontrou um judeu chamado Áquila, natural do Ponto, recentemente chegado da Itália com Priscila, sua esposa, porquanto Cláudio tinha decretado que todos os judeus saíssem de Roma.”

Essa correlação entre Suetônio e Atos tem sido apontada por estudiosos como evidência de que ambos os textos se referem ao mesmo evento histórico: a expulsão dos judeus da cidade de Roma por volta do ano 49 d.C. [3]. A interpretação predominante entre os estudiosos é que o decreto de Cláudio foi motivado por conflitos internos entre judeus que criam em Jesus como o Messias e os que rejeitavam essa crença. Os tumultos decorrentes dessa disputa interna foram percebidos pelas autoridades romanas como ameaças à ordem pública.

John P. Meier argumenta que os cristãos primitivos eram inicialmente identificados como uma facção judaica, o que dificultava a distinção entre judeus e cristãos pelas autoridades romanas [4]. Assim, é provável que Cláudio tenha expulsado todos os judeus — cristãos inclusos — como forma de restabelecer a ordem, sendo Suetônio um eco desse conflito.

3. A intencionalidade histórica de Suetônio

Diferentemente de Tácito, que possui um estilo mais analítico, Suetônio adota uma abordagem mais anedótica e biográfica. Seu interesse maior não está na precisão dos eventos históricos, mas na compilação de episódios que caracterizem a personalidade dos imperadores. No entanto, esse estilo permite ao leitor acessar relatos populares que circulavam em Roma à época.

A menção a “Chrestus” como instigador de tumultos sugere que Suetônio acreditava que se tratava de um agitador presente fisicamente em Roma. Isso pode ser explicado por sua distância cronológica e por seu provável desconhecimento da teologia cristã. Ainda assim, o fato de ele associar o nome “Chrestus” a distúrbios entre judeus é coerente com a pregação cristã inicial, que gerava divisões dentro das comunidades judaicas. E. M. Smallwood considera essa leitura cristológica a mais plausível, dado o contexto e a ausência de registros de um agitador judeu de nome “Chrestus” naquela época [5].

4. Implicações para a historicidade de Jesus

A passagem de Suetônio não constitui uma evidência direta da existência histórica de Jesus, como o faz Tácito em seus Anais, mas serve como um testemunho indireto da presença e do impacto dos seguidores de Cristo em Roma. A menção, ainda que ambígua, confirma que já na década de 40 d.C. havia tensões causadas pela fé cristã dentro da comunidade judaica romana. Van Voorst reconhece que, embora Suetônio não soubesse exatamente quem era Cristo, sua referência atesta o impacto social do cristianismo nascente [6].

Além disso, o fato de Suetônio, em outro trecho (Nero 16), mencionar explicitamente os “christiani”, perseguidos por Nero após o incêndio de Roma, demonstra que o autor conhecia, mesmo que superficialmente, a existência de um grupo ligado a “Christus” [7]. A partir disso, a referência a “Chrestus” em Cláudio 25.4 deve ser vista como parte de um conjunto de informações dispersas, mas coerentes, sobre a presença cristã no Império Romano nas primeiras décadas após a morte de Jesus.

Conclusão

Portanto a análise filológica e contextual da passagem de Suetônio sobre a expulsão dos judeus sob Cláudio, aliada à correspondência com Atos 18:2, permite concluir com razoável segurança que “Chrestus” é uma corruptela de “Christus”, e que o texto é uma referência indireta a Jesus Cristo. A instabilidade social gerada pelas pregações cristãs no seio da comunidade judaica provocou distúrbios que levaram à intervenção do Estado romano.

Embora Suetônio não tenha plena consciência da identidade do personagem a quem se refere, seu relato preserva um testemunho valioso sobre a difusão do cristianismo e suas repercussões nas primeiras décadas do movimento. A menção, mesmo indireta, reforça o papel histórico de Jesus como figura central em disputas religiosas no contexto do judaísmo do primeiro século.

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Referências e Notas

[1] LANE, William L. The Encyclopedia of Early Christianity. New York: Garland Publishing, 1990.

[2] DUNN, James D. G. Jesus Remembered. Grand Rapids: Eerdmans, 2003.

[3] BRUCE, F. F. The New Testament Documents: Are They Reliable?. 6. ed. Grand Rapids: Eerdmans, 2003.

[4] MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. Vol. 1: The Roots of the Problem and the Person. New York: Doubleday, 1991.

[5] SMALLWOOD, E. Mary. The Jews Under Roman Rule: From Pompey to Diocletian. Leiden: Brill, 1976.

[6] VAN VOORST, Robert E. Jesus Outside the New Testament: An Introduction to the Ancient Evidence. Grand Rapids: Eerdmans, 2000.

[7] SUETÔNIO. Vida dos Doze Césares. Tradução e introdução de Maria José Meira. São Paulo: Edipro, 2015.



DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Novo Testamento e Origens Cristãs pelo Seminário Bíblico de São Paulo/SP (FETSB); Mestre (M.A.) em Teologia e Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG). É teólogo, biblista, historiador e apologista cristão evangélico.

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