Lucas 23:43 e a Questão da Pontuação: Uma Análise Exegética, Gramatical e Contextual

 



A passagem de Lucas 23:43 — “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso” — tem sido, ao longo da história, objeto de intenso debate exegético. O grego koiné, língua em que o texto foi originalmente escrito, não possuía pontuação padronizada como conhecemos hoje, de modo que a posição da vírgula altera substancialmente o sentido da frase. A tensão hermenêutica reside entre duas possibilidades: (a) vírgula antes de “hoje” — implicando que o ladrão estaria com Jesus no mesmo dia no Paraíso; e (b) vírgula depois de “hoje” — enfatizando que Jesus está fazendo a declaração “hoje”, sem necessariamente situar temporalmente o cumprimento da promessa. O presente estudo buscaremos analisar a questão a partir de três ângulos: (1) análise linguística do grego koiné; (2) padrões estilísticos do próprio Evangelho de Lucas, especialmente nas falas de Jesus; e (3) evidências contextuais e teológicas, considerando ainda o pano de fundo semítico que permeia a narrativa.

1. Texto grego e estrutura sintática

O texto grego segundo as edições críticas modernas (NA28) apresenta-se assim:

 - Ἀμήν σοι λέγω σήμερον, μετ’ ἐμοῦ ἔσῃ ἐν τῷ παραδείσῳ

De forma literal: “Amém a ti digo hoje, com-me estarás no Paraíso.”

O advérbio σήμερον (“hoje”) ocupa posição intermediária, imediatamente após o verbo λέγω (“digo”). Do ponto de vista gramatical, é um princípio observado por estudiosos do grego que o advérbio tende a modificar o verbo mais próximo [1]. Assim, uma leitura puramente sintática poderia favorecer “Em verdade te digo hoje, estarás comigo no Paraíso”. No entanto, a exegese não se limita à análise formal: a disposição do advérbio, em Lucas, muitas vezes possui carga enfática e teológica, especialmente quando relacionado a eventos de salvação imediata.

2. O padrão “Amém, digo-te” nos Evangelhos

O uso de “ἀμήν λέγω σοι” (“em verdade te digo”) é recorrente nos evangelhos sinópticos, mas Lucas apresenta algumas peculiaridades. Em todas as demais ocorrências no terceiro evangelho (Lc 4:24; 12:37; 18:29; etc.), a fórmula é seguida imediatamente da afirmação prometida, sem advérbios intermediários que modifiquem o “dizer”[2]. Por exemplo:

Lucas 18:29: “Em verdade vos digo, ninguém que tenha deixado casa… deixará de receber…”

Lucas 4:24: “Em verdade vos digo que nenhum profeta é bem recebido…”

Esse padrão estilístico de Lucas — manter a fórmula introdutória unida à proposição principal — favorece a leitura com a vírgula antes de “hoje”. A introdução solene é seguida de uma promessa ou declaração direta, o que coaduna com o fluxo narrativo do versículo em debate.

3. Influências semíticas e ênfase no “hoje”

Lucas, mais que os outros evangelistas, faz uso teológico do termo σήμερον (“hoje”) como indicativo da realização imediata da salvação. Em passagens-chave, como Lucas 2:11 (“Hoje vos nasceu o Salvador”), Lucas 4:21 (“Hoje se cumpriu esta escritura”) e Lucas 19:9 (“Hoje houve salvação nesta casa”), o advérbio não é meramente circunstancial, mas expressa a entrada efetiva do ato salvífico no tempo presente [3].

Portanto, quando colocado antes do verbo “estarás” no contexto de Lucas 23:43, “σήμερον” reforçaria o momento de cumprimento: a promessa não é apenas dita hoje, mas se concretiza no próprio dia. Essa perspectiva dialoga com a intenção teológica lucana de apresentar a salvação como realidade inaugurada e presente, ainda que seu cumprimento escatológico final permaneça aberto.

4. Evidências contextuais imediatas

O contexto narrativo é igualmente decisivo. Jesus está na cruz, dirigindo-se a um malfeitor que lhe pede para ser lembrado quando entrar em seu reino. O versículo anterior (Lc 23:42) carrega o peso emocional de um pedido humilde. A resposta de Jesus, se interpretada com vírgula antes de “hoje”, tem função pastoral e de consolo imediato: “Hoje estarás comigo no Paraíso” é promessa que neutraliza o desespero e confirma a proximidade do cumprimento.

Se, por outro lado, a vírgula for colocada depois de “hoje”, a frase se torna formalmente menos consoladora e mais declarativa: “Hoje te digo que estarás comigo…” — o que, embora possível, quebra a urgência pastoral do momento. Como nota Marshall [4], a função discursiva da fala do Senhor Jesus é tanto soteriológica quanto reconfortante, e isso sugere fortemente a leitura tradicional.

5. Posição dos acadêmicos e exegese comparada

Bruce M. Metzger [5] observa que a gramática não é conclusiva, mas que o uso estilístico de Lucas e o sentido pastoral favorecem a vírgula antes de “hoje”.

F. F. Bruce [6] reforça que “σήμερον” no terceiro evangelho tem carga teológica de cumprimento presente, tornando improvável que Lucas o tenha usado aqui sem essa intenção.

N. T. Wright [7] enfatiza que a promessa imediata é coerente com a teologia do reino já inaugurado.

Por outro lado, George Ladd [8] lembra que alguns textos siríacos antigos poderiam apoiar a outra leitura, ainda que isso represente minoria na tradição textual.

6. Conclusão

Portanto em suma a análise gramatical pura não resolve a questão, pois a posição de “σήμερον” permite tecnicamente as duas leituras. Contudo, ao integrar:

1. O padrão estilístico lucano na fórmula “Amém, digo-te”;

2. O uso teológico do advérbio “hoje” como indicativo da irrupção da salvação no presente;

3. O contexto narrativo de consolo imediato ao ladrão na cruz;

4. E a tradição interpretativa majoritária desde os primeiros séculos;

A interpretação mais consistente, acadêmica e contextualmente harmoniosa é:

 - “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso.”

Esta leitura mantém a integridade do estilo lucano, honra o pano de fundo semítico e cumpre a função pastoral e teológica que o contexto requer.

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Referências

[1] BLASS, F.; DEBRUNNER, A.; FUNK, R. A Greek Grammar of the New Testament and Other Early Christian Literature. Chicago: University of Chicago Press, 1961.

[2] FITZMYER, Joseph. A. The Gospel According to Luke (X-XXIV). Nova York: Doubleday, 1985. (The Anchor Bible, v. 28A).

[3] GREEN, Joel. B. The Gospel of Luke. Grand Rapids: Eerdmans, 1997. (New International Commentary on the New Testament).

[4] MARSHALL, I. H. The Gospel of Luke: A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids: Eerdmans, 1978. (New International Greek Testament Commentary).

[5] METZGER, Bruce. M. A Textual Commentary on the Greek New Testament. 2. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft/United Bible Societies, 1994.

[6] BRUCE, F. F. The Hard Sayings of Jesus. Downers Grove: InterVarsity Press, 1983.

[7] WRIGHT, N. T. Jesus and the Victory of God. Londres: SPCK, 1996.

[8] LADD, George. E. A Theology of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1993.








DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Estudos Bíblicos e Exegese pelo Seminário Bíblico de São Paulo/SP (FETSB); Mestre (M.A.) em Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG).É historiador, biblista, teólogo e apologista cristão evangélico.

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