O Kerigma do Cristianismo Primitivo: Desafios e Testemunhos no Século I

 





O termo kerigma provém do grego comum κήρυγμα (kērygma), que significa literalmente “anúncio”, “proclamação” ou “pregação”. No contexto da fé cristã primitiva, o kerigma referia-se à mensagem central anunciada pelos apóstolos, isto é, a proclamação de que Jesus Cristo havia sido crucificado, morto e ressuscitado, constituindo o cumprimento das promessas divinas e a inauguração de uma nova realidade escatológica.

Assim, o kerigma do Cristianismo Primitivo consistia na proclamação essencial da fé: a morte, crucificação e ressurreição de Jesus de Nazaré. Este anúncio, aparentemente simples, teve implicações teológicas, culturais e sociais revolucionárias, pois confrontava diretamente os paradigmas do Judaísmo do Segundo Templo e os valores do mundo greco-romano. Nossa proposta neste estudo é analisar de forma histórica, crítica e acadêmica como o kerigma desafiava as concepções religiosas e filosóficas da época. Ao longo do estudo, dialogaremos com acadêmicos que têm estudado o impacto da mensagem cristã primitiva, evidenciando a originalidade e o caráter disruptivo desse anúncio.

1. O Messias e a Expectativa Judaica no Segundo Templo

O Judaísmo do Segundo Templo possuía uma pluralidade de expectativas messiânicas, mas em geral, esperava-se um líder vitorioso, libertador político e restaurador da realeza davídica. Como afirma E. P. Sanders, “a crucificação de Jesus era a antítese das esperanças messiânicas judaicas”[1]. Segundo Deuteronômio 21,23, todo aquele que fosse pendurado no madeiro estava sob maldição. Portanto, um Messias crucificado soava como uma contradição em termos. N. T. Wright observa que para a mentalidade judaica da época, um homem que morresse de forma vergonhosa não poderia ser o Ungido de Deus, mas sim alguém rejeitado por Ele [2]. Além disso, a ressurreição fazia parte da escatologia judaica, mas como evento coletivo e futuro, no “fim dos tempos” (Dn 12,2). A proclamação cristã de que um indivíduo, e precisamente o Messias, já havia ressuscitado no meio da história, rompia com a expectativa temporal e teológica judaica [3].

2. A Concepção Greco-Romana: Filosofia e Religião Cívica

No mundo greco-romano, o anúncio cristão era igualmente paradoxal. A crucificação que era considerada a pena máxima no Imperio Romano, era a mais degradante, reservada a escravos, estrangeiros e rebeldes políticos. Como afirma Martin Hengel, “a crucifixão era tão ignominiosa que raramente era mencionada em literatura clássica respeitável”[4]. Um “homem divino” (θεῖος ἀνήρ), segundo a concepção helenística, jamais seria executado dessa forma — isso equivaleria a negar sua condição divina.

Do ponto de vista filosófico, a ideia de ressurreição do corpo era absurda. O platonismo e o estoicismo viam o corpo como prisão da alma, de onde esta deveria ser libertada. Por isso, quando Paulo prega em Atenas sobre a ressurreição, muitos zombam (At 17,32). A esperança grega, como aponta Rudolf Bultmann, estava na imortalidade da alma, não em um corpo restaurado [5].

Já nas religiões de mistério, havia narrativas de divindades que morriam e renasciam, mas essas eram expressões mítico-cíclicas ligadas à fertilidade da natureza. A ressurreição cristã, ao contrário, era proclamada como um evento único, histórico e verificável, ocorrendo com uma pessoa real no tempo e no espaço [6].

3. A Mensagem Paradoxal: Escândalo e Loucura

O kerigma proclamava um paradoxo absoluto: o Messias crucificado (escândalo para os judeus) e o homem ressuscitado (loucura para os gregos). Paulo sintetiza isso em 1Cor 1,23: “nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios”. Esse choque cultural, no entanto, era a força da mensagem cristã. Ao inverter categorias de maldição em bênção, humilhação em glória e fracasso em vitória, o cristianismo apresentava uma visão radicalmente nova da ação divina. Como destaca Jürgen Moltmann, a cruz não é um acidente no plano de Deus, mas a revelação do amor divino em sua forma mais profunda [7].

4. Impactos Sociais e Culturais

O anúncio da ressurreição e da cruz repercutia também na organização social. A comunidade cristã (ekklesía) rompeu com distinções rígidas: judeu/grego, escravo/livre, homem/mulher (Gl 3,28). Isso subvertia tanto a ordem judaica centrada na Lei quanto as hierarquias do mundo romano.

Além disso, o kerigma oferecia uma esperança não cíclica, mas escatológica: não o eterno retorno dos deuses, mas a promessa de uma nova criação inaugurada pela ressurreição de Cristo.

Resumo

1. No judaísmo, a crucificação implicava maldição e a ressurreição era esperada apenas no fim dos tempos; o kerigma inverte essas categorias.

2. No mundo greco-romano, a crucificação era a morte mais vergonhosa e a ressurreição corporal era absurda; o kerigma confronta essas convicções.

3. O cristianismo primitivo não buscou conciliar com os paradigmas vigentes, mas confrontá-los, oferecendo uma visão radical da história e do divino.

Conclusão

Portanto a proclamação cristã primitiva era contraintuitiva e paradoxal, pois subvertia as expectativas religiosas do judaísmo e a racionalidade filosófica e paga do helenismo. O Messias crucificado e ressuscitado corporalmente eram imagens inconciliáveis com as categorias disponíveis no século I. No entanto, exatamente nesse choque cultural e teológico residia sua força. O kerigma revelava um Deus que não se conformava com as expectativas humanas, mas agia de modo surpreendente e revolucionário. Ao invés de confirmar os paradigmas vigentes, ele os desconstruiu, inaugurando um novo horizonte de sentido histórico, religioso e social. Dessa forma, o cristianismo primitivo mostrou-se não apenas uma religião nascente, mas uma radical inversão de valores, cuja mensagem permanece desafiadora até hoje.

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Referências

[1] SANDERS, E. P. Paul and Palestinian Judaism. Philadelphia: Fortress Press, 1977.

[2] WRIGHT, N. T. The Resurrection of the Son of God. Minneapolis: Fortress Press, 2003.

[3] DUNN, James D. G. The Theology of Paul the Apostle. Grand Rapids: Eerdmans, 1998.

[4] HENGEL, Martin. Crucifixion in the Ancient World and the Folly of the Message of the Cross. Philadelphia: Fortress Press, 1977.

[5] BULTMANN, Rudolf. Neues Testament und Mythologie. Hamburg: Herbert Reich, 1941.

[6] HURTADO, Larry. Lord Jesus Christ: Devotion to Jesus in Earliest Christianity. Grand Rapids: Eerdmans, 2003.

[7] MOLTMANN, Jürgen. The Crucified God. London: SCM Press, 1974.







DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Estudos Bíblicos e Exegese pelo Seminário Bíblico de São Paulo/SP (FETSB); Mestre (M.A.) em Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG).É historiador, biblista, teólogo e apologista cristão evangélico.

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