A Mentalidade Judaica e a Impossibilidade de um Kerigma Fabricado: Um Estudo Histórico-Analítico




Nos estudos da origens do cristianismo, uma das questões centrais refere-se à credibilidade histórica do Kerigma da Ressurreição. Uma abordagem fundamental é considerar o contraste entre a mentalidade judaica pragmática do século I e a mentalidade helenística abstrata. Enquanto o pensamento grego se inclinava a especulações metafísicas, idealistas e míticas, ou seja, uma mentalidade abstrata, a tradição judaica estava enraizada em uma visão histórica, prática e concreta da fé, ou seja, pragmática. Essa diferença cultural lança luz sobre a natureza do testemunho apostólico e sugere que os discípulos de Jesus, como judeus, não teriam inventado conscientemente uma narrativa falsa, sobretudo em questões que envolviam a ação de Deus.

1. O Pragmatismo Judaico do Século I

O judaísmo do Segundo Templo (século V a.C. – 70 d.C.) era profundamente prático e orientado pela Torá. Como destaca Jacob Neusner, “a vida judaica era a Torá aplicada: desde o nascer do sol até o pôr-do-sol, cada aspecto da existência era regulado”[1].

A identidade judaica estava diretamente ligada à observância da Lei, às práticas rituais e ao culto no Templo.

A fé não era um exercício especulativo, mas a recordação de atos concretos de Deus na história: a libertação do Egito, a Aliança no Sinai, o retorno do exílio. Esse caráter histórico-pragmático implicava que o judaísmo avaliava a verdade de uma crença não em categorias filosóficas abstratas, mas em sua correspondência com a realidade histórica e com a fidelidade a Deus.

2. A Mentalidade Grega Abstrata

Em contraste, o mundo grego-helênico era marcado pela busca da sabedoria universal e especulativa:

O platonismo via o mundo sensível (mundo material) como sombra do mundo das ideias.

O estoicismo buscava viver em harmonia com a ordem racional (logos) do cosmos.

A morte era concebida como libertação da alma do corpo, em contraste com a esperança judaica de ressurreição corporal. Como observa Rudolf Bultmann, “a esperança grega estava na imortalidade da alma, não na restauração do corpo”[2]. Isso mostra que a mentalidade helenística era, por natureza, abstrata e idealista, mais aberta à criação de mitos simbólicos do que o judaísmo.

3. O Valor do Testemunho no Judaísmo

O pragmatismo judaico também se refletia na seriedade do testemunho:

O Antigo Testamento condena explicitamente o falso testemunho como pecado grave (Êx 20,16).

Em questões religiosas, mentir sobre uma suposta ação de Deus era considerado blasfêmia, punível com exclusão da comunidade ou até morte (Dt 19,15-21).

Como ressalta E. P. Sanders, “a religião judaica exigia veracidade absoluta em testemunhos públicos, especialmente quando estes se referiam à ação divina”[3]. Portanto, os apóstolos, como judeus, estavam profundamente conscientes das consequências de inventar algo falso em nome de Deus.

4. O Kerigma da Ressurreição e sua Veracidade

Dentro desse contexto, a proclamação cristã da ressurreição ganha um peso especial:

Os discípulos anunciaram algo que sabiam ser escandaloso para judeus e loucura para gregos (1Cor 1,23).

Se fosse uma invenção consciente, eles estariam deliberadamente pecando contra a Torá, arriscando condenação eterna. Como observa N. T. Wright, “a crença dos discípulos de que Jesus havia ressuscitado não foi invenção; foi a única explicação plausível para sua transformação radical após a crucificação”[4]. A mentalidade judaica pragmática impede que vejamos o kerigma como mito criado à semelhança dos mitos helenísticos. Pelo contrário, a força do anúncio está na convicção de que os discípulos testemunharam um fato histórico real.

5. Conclusão

A análise comparativa mostra que:

A mentalidade judaica do século I era pragmática, orientada por eventos concretos e pela prática da Lei.

A mentalidade grega era abstrata, inclinada a construções filosóficas e mitos simbólicos.

Nesse contexto, os discípulos, como judeus, jamais inventariam um fato que soubessem ser falso, sobretudo algo atribuído a Deus. Portanto, o kerigma da Ressurreição de Cristo repousava não em especulação ou mito, mas na convicção de um evento histórico vivido e testemunhado. A originalidade e a força do Cristianismo Primitivo derivam justamente da fidelidade dos primeiros discípulos ao seu caráter judaico-pragmático: eles anunciaram o que creram ter realmente visto e experimentado, mesmo diante da rejeição cultural, das hostilidades e das perseguições. 

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Referências

[1] NEUSNER, Jacob. Judaism: The Evidence of the Mishnah. Chicago: University of Chicago Press, 1981.

[2] BULTMANN, Rudolf. Neues Testament und Mythologie. Hamburg: Herbert Reich, 1941.

[3] SANDERS, E. P. Paul and Palestinian Judaism. Philadelphia: Fortress Press, 1977.

[4] WRIGHT, N. T. The Resurrection of the Son of God. Minneapolis: Fortress Press, 2003.




DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Estudos Bíblicos e Exegese pelo Seminário Bíblico de São Paulo/SP (FETSB); Mestre (M.A.) em Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG).É historiador, biblista, teólogo e apologista cristão evangélico.

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