A passagem de Hebreus 2:10–18 ocupa uma posição singular na Carta aos Hebreus, pois apresenta o cerne da cristologia encarnacional e redentora do Novo Testamento. Nessa passagem, o autor sagrado desenvolve uma Teologia Robusta sobre a obra de Cristo como Salvador que se identifica plenamente com a humanidade, não apenas em sua condição existencial, mas também em seus sofrimentos, tentações e morte. A soteriologia de Hebreus é fundamentada na solidariedade do Filho com os filhos de Deus, destacando que a salvação é tanto objetiva quanto subjetiva, tanto legal quanto relacional.
1. A Apropriação do Sofrimento como Meio de Aperfeiçoamento (v.10)
O versículo 10 declara que "convinha que aquele, por cuja causa e por quem todas as coisas existem, conduzindo muitos filhos à glória, aperfeiçoasse, por meio de sofrimentos, o Autor da salvação deles". A palavra "convinha" (gr. έπρεπεν) implica que havia uma adequação moral e teológica no sofrimento do Messias. O termo "Autor" (gr. αρχηγός) carrega a ideia de pioneiro ou aquele que abre caminho. Cristo, portanto, não é apenas o agente da salvação, mas também seu modelo paradigmático.
O sofrimento não é visto como um acidente, mas como instrumento da perfeição. Perfeição aqui não indica imperfeição moral anterior, mas a completação da missão messiânica. Como afirma F. F. Bruce, o sofrimento "foi o caminho pelo qual Ele se tornou perfeitamente qualificado para ser o Sumo Sacerdote dos homens"[1].
2. A Fraternidade Redentora entre Cristo e os Salvos (vv.11–13)
Nos versículos seguintes, o autor enfatiza a unidade entre o Santificador e os santificados, afirmando que "por isso, ele não se envergonha de lhes chamar irmãos" (v.11). A encarnação estabelece uma irmandade real e não meramente simbólica. Cristo se associa com os homens em sua humanidade para poder redimi-los plenamente. Esta fraternidade é ilustrada com citações do Antigo Testamento (Sl 22:22; Is 8:17–18), mostrando que a solidariedade do Messias com seu povo é profeticamente estabelecida.
Essa irmandade implica não apenas empatia, mas representação legal e sacerdotal. Como observa Donald Guthrie, "Cristo não apenas compartilha nossa natureza, mas também nosso destino, para nos levar à glória"[2].
3. A Destruição do Inimigo pela Encarnação (vv.14–15)
Cristo compartilha da "carne e sangue" (gr. σαρκός και αῖματος) com o propósito de destruir aquele que tem o poder da morte, isto é, o diabo. A linguagem aqui é forte: destruir (gr. καταργέω) não significa aniquilar, mas tornar inoperante. A morte é derrotada ao ser esvaziada de seu terror escatológico.
Cristo liberta aqueles que estavam "sujeitos à escravidão pelo pavor da morte". Essa libertação tem um aspecto existencial imediato: os crentes não mais vivem sob o jugo do medo. Como afirma John Owen, "Cristo assumiu nossa natureza não para ser apenas semelhante a nós, mas para nos livrar de tudo que nos oprime"[3].
4. A Eficácia Sacerdotal de Cristo para com os Tentados (vv.16–18)
O clímax da passagem está na afirmação de que Cristo se fez semelhante aos "irmãos" em tudo, para ser "misericordioso e fiel Sumo Sacerdote". Esta é a primeira menção direta ao tema sacerdotal em Hebreus, que será amplamente desenvolvido nos capítulos seguintes.
O Sumo Sacerdote é mediador entre Deus e o povo, e essa mediação é efetiva porque Cristo conhece na carne a realidade da tentação. Ele "pode socorrer os que são tentados" porque foi "tentado em tudo, mas sem pecado" (cf. Hb 4:15). Como nota Raymond Brown, "não há dor, tentação ou sofrimento humano que Ele não compreenda plenamente"[4]
Conclusão
Assim Hebreus 2:10–18 oferece uma teologia encarnacional profunda, apresentando Cristo como o Salvador que não apenas age por nós, mas conosco e em nós. Sua obra redentora é eficaz porque é solidária; sua mediação é perfeita porque é empática. A salvação em Hebreus não é apenas um ato legal de absolvição, mas uma reconciliação ontológica que transforma a existência humana.
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Notas
1. F. F. Bruce, The Epistle to the Hebrews (NICNT), Grand Rapids: Eerdmans, 1990.
2. Donald Guthrie, Hebrews: Tyndale New Testament Commentaries, Nottingham: IVP, 1983.
3. John Owen, The Death of Death in the Death of Christ, Edinburgh: Banner of Truth, 1959.
4. Raymond Brown, The Message of Hebrews, Downers Grove: IVP, 1982.