O capítulo 15 de 1 Coríntios representa o tratado mais extenso sobre a ressurreição no Novo Testamento. A preocupação de Paulo é responder à negação da ressurreição dos mortos por parte de alguns membros da igreja em Corinto. Sua resposta não apenas reafirma a doutrina da ressurreição, mas a reconstrói à luz da ressurreição de Jesus Cristo, que ele declara ser as "primícias dos que dormem" (1Co 15:20). Neste artigo proporemos uma análise exegética e teológica do texto, fazendo comparação entre a visão paulina e outras correntes do judaísmo do Segundo Templo, demonstrando que Paulo defende uma ressurreição corporal transformada e que a ressurreição de Cristo é, de fato, literal e corporal.
1. A Ressurreição como Fundamenta do Evangelho (1Co 15:1–11)
Paulo inicia o capítulo recordando aos coríntios o evangelho que lhes foi pregado, no qual está centrado o evento da ressurreição de Cristo (vv.3–4). Ele afirma que Cristo "morreu pelos nossos pecados segundo as Escrituras", "foi sepultado" e "ressuscitou ao terceiro dia". O uso de "segundo as Escrituras" ancoraria a experiência pascal no cumprimento da promessa veterotestamentária[1]. Ademais, o argumento de que Jesus apareceu a diversas testemunhas reforça a natureza objetiva da ressurreição. Como argumenta N.T. Wright, Paulo não está falando de uma mera experiência subjetiva ou espiritual, mas de um evento histórico com consequências escatológicas[2]. Essa perspectiva é compartilhada por James D.G. Dunn, que ressalta que a tradição da ressurreição se baseia em uma experiência coletiva e reconhecida pela comunidade primitiva como física e transformadora[3]. Larry Hurtado também afirma que as aparições do Cristo ressuscitado envolvem uma dimensão corporal real, não meramente simbólica[4]. Raymond E. Brown observa que os relatos das aparições incluem a insistência de que Jesus foi visto, tocado e comeu com os discípulos, características de um corpo físico ressuscitado[5]. Rudolf Pesch defende que a compreensão da ressurreição no cristianismo primitivo, inclusive em Paulo, é de uma transformação real do corpo morto em um corpo vivo glorificado[6].
A exegese dos verbos usados por Paulo também reforça essa leitura. O uso do termo grego egegertai ("foi ressuscitado") é na voz passiva perfeita, indicando uma ação concluída com efeitos permanentes, e implica uma realidade concreta e objetiva. Além disso, a referência à sepultura de Jesus e à sua aparição corporal a testemunhas (vv. 5-8) sustenta fortemente a afirmação de que a ressurreição foi literal e corporal.
2. Cristo como Primícias (1Co 15:20–23)
O termo "primícias" (aparchē) utilizado por Paulo possui conotações litúrgicas e agrícolas, apontando para a garantia da colheita plena. Assim, a ressurreição de Cristo é apresentada como o início de um processo que culminará na ressurreição dos que pertencem a Ele, "na sua vinda" (parousia). Para Richard Hays, essa expressão introduz um cronograma escatológico coerente com o pensamento judaico, mas radicalizado pela centralidade de Cristo[7]. A analogia com as primícias implica continuidade: assim como o primeiro fruto é do mesmo tipo que os restantes, também os fiéis participarão da mesma natureza de corpo glorificado. Michael Gorman acrescenta que a justificação, para Paulo, não se completa sem a glorificação corporal, que se realiza plenamente na ressurreição dos mortos[8].
3. A Natureza do Corpo Ressurreto (1Co 15:35–49)
Paulo responde diretamente à objeção sobre "como ressuscitam os mortos e com que corpo vêm". Sua resposta é construída com base em analogias naturais (semente, carne, corpos celestes), e numa sequência de antítese: corrupção/incorruptibilidade, desonra/glória, fraqueza/poder, corpo natural (psychikon)/corpo espiritual (pneumatikon). O uso da palavra "corpo" (sōma) nos dois casos indica continuidade material, mas com transformação da sua qualidade. Como observa Gordon Fee, Paulo não está contrastando corpo com espírito, mas dois tipos de corpo[9]. A expressão "corpo espiritual" deve ser compreendida como um corpo animado pelo Espírito Santo, e não um espírito sem corpo. Larry Hurtado complementa essa leitura ao enfatizar que as primeiras crenças cristãs não concebiam a ressurreição como desencarnada, mas como transformação do corpo em conformidade com o Cristo ressuscitado[4].
4. Comparando com o Judaísmo do Segundo Templo
As ideias de ressurreição estavam presentes em diversas correntes judaicas contemporâneas a Paulo:
Fariseus: Acreditavam em uma ressurreição corporal futura (cf. Atos 23:6–8). Essa visão é compatível com Paulo, embora este a modifique ao afirmar que a ressurreição começou com Cristo.
Saduceus: Negavam a ressurreição e qualquer forma de vida após a morte. A posição de Paulo é diametralmente oposta.
Essênios/Qumran: Apresentam ambiguidades; alguns textos sugerem esperança escatológica, mas a natureza da ressurreição não é claramente corporal.
Literatura Apocalíptica (Daniel 12, 2 Macabeus 7): Defendem uma ressurreição corporal de justos e injustos. Em 2 Macabeus 7, por exemplo, os mártires esperam receber seus membros de volta das mãos de Deus, o que mostra uma crença corporal e retributiva. Paulo compartilha essa visão, mas a subordina à ressurreição de Cristo como modelo e garantia.
Como resume Wright, a inovação paulina é afirmar que a ressurreição escatológica já começou com Cristo, introduzindo um "intervalo" escatológico entre a primeira e a segunda ressurreição[10].
Conclusão
Portanto a análise exegética de 1 Coríntios 15 demonstra que Paulo argumenta de forma consistente e intencional em favor de uma ressurreição corporal transformada, e não meramente espiritual ou simbólica. Sua teologia dialoga com tradições judaicas contemporâneas, especialmente farisaicas e apocalípticas, mas é profundamente cristocêntrica: a ressurreição de Cristo é o ponto de partida e garantia da ressurreição futura dos crentes. Exegeticamente, é evidente que Paulo crê e ensina que a ressurreição do Senhor Jesus foi literal e corporal, fundamentando nela toda a esperança escatológica cristã. Essa posição é sustentada por uma tradição coerente no cristianismo primitivo e confirmada por uma ampla base acadêmica contemporânea.
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Referências e Notas
[1] HAYS, Richard B. First Corinthians. Interpretation Commentary Series. Louisville: Westminster John Knox Press, 1997. p. 256.
[2] WRIGHT, N. T. The Resurrection of the Son of God. Minneapolis: Fortress Press, 2003. p. 319-321.
[3] DUNN, James D.G. The Theology of Paul the Apostle. Grand Rapids: Eerdmans, 1998. p. 278-281.
[4] HURTADO, Larry W. Lord Jesus Christ: Devotion to Jesus in Earliest Christianity. Grand Rapids: Eerdmans, 2003. p. 479-481.
[5] BROWN, Raymond E. An Introduction to New Testament Christology. Mahwah: Paulist Press, 1994. p. 164-168.
[6] PESCH, Rudolf. Zur Entstehung des Oster-Glaubens. Freiburg: Herder, 1975. p. 112-115.
[7] HAYS, Richard B. First Corinthians. Louisville: Westminster John Knox Press, 1997. p. 268-270.
[8] GORMAN, Michael J. Apostle of the Crucified Lord: A Theological Introduction to Paul and His Letters. Grand Rapids: Eerdmans, 2004. p. 334-336.
[9] FEE, Gordon D. The First Epistle to the Corinthians. Grand Rapids: Eerdmans, 1987. p. 782-785.
[10] WRIGHT, N. T. The Resurrection of the Son of God. Minneapolis: Fortress Press, 2003. p. 477-481.