A Tradição Oral no Cristianismo Primitivo: Entre a Memória Viva e a Formação dos Evangelhos Canônicos

 

A Tradição Oral no Cristianismo Primitivo: Entre a Memória Viva e a Formação dos Evangelhos Canônicos


Neste breve artigo investigaremos a tradição oral como fundamento da transmissão e preservação dos ensinamentos cristãos nas primeiras décadas do Cristianismo Primitivo. A partir de uma abordagem histórica e crítica, demonstra-se que a oralidade nas sociedades do mundo antigo — em especial nas comunidades judaicas e helenísticas do Mediterrâneo Oriental — era um meio altamente estruturado, confiável e socialmente valorizado de transmissão do saber. Contrapondo-se à ideia moderna do “telefone sem fio”, o estudo evidencia que os Evangelhos Canônicos são produtos de uma memória coletiva consolidada por práticas orais consistentes, compartilhadas, controladas e performáticas. Particular atenção é dada ao conceito de tradição oral informal controlada, desenvolvido por Kenneth E. Bailey, cuja análise empírica e antropológica contribui decisivamente para refutar visões reducionistas da oralidade cristã primitiva.

1. Introdução

A origem do Cristianismo está fortemente vinculada a um ambiente cultural onde a tradição oral era o principal meio de comunicação, ensino e preservação da memória. Antes da redação dos Evangelhos — que começam a surgir entre os anos 50 e 60 d.C. — os ensinamentos de Jesus e os relatos de suas ações circularam por décadas nas comunidades cristãs por via oral. Longe de ser um sistema falho ou vulnerável à corrupção da mensagem, como popularmente se imagina por meio da analogia do “telefone sem fio”, a oralidade antiga possuía estruturas rigorosas que garantiam estabilidade e fidelidade na transmissão de informações¹.

2. A Oralidade no Mundo Antigo: Contexto Cultural e Estruturas de Controle

As sociedades da Antiguidade, sobretudo antes da disseminação ampla do suporte escrito, eram eminentemente orais. A alfabetização era restrita, e mesmo em culturas altamente letradas como a greco-romana ou judaica, a oralidade permanecia como a principal forma de ensino, prática religiosa e sociabilidade².

Walter Ong denominou essas sociedades como “culturas de oralidade primária”, nas quais o pensamento é estruturado de modo cumulativo, rítmico e repetitivo, características que facilitam a memorização³. Elementos como fórmulas fixas, paralelismos e repetições estruturais são identificáveis nas Escrituras cristãs, especialmente nos ditos atribuídos a Jesus.

A tradição rabínica judaica, da qual emergiu o Cristianismo, mostra-se exemplar nesse aspecto. A Mishná, codificada no século II d.C., é herdeira de séculos de transmissão oral rigidamente estruturada, com base em fórmulas e repetição pública.

3. Cristianismo Primitivo e Tradição Oral: A Memória Vida e Performada

O Cristianismo emerge exatamente nesse contexto. Os primeiros seguidores de Jesus — muitos dos quais judeus galileus e helenistas — absorveram e adaptaram os mecanismos de oralidade do seu tempo. O conteúdo da pregação essencial da fé cristã — o querigma — era transmitido oralmente: “Cristo morreu por nossos pecados, foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia e apareceu a muitos” (cf. 1 Cor 15:3-5). Esse fragmento paulino, um dos mais antigos do Novo Testamento, é reconhecido como fórmula oral arcaica, possivelmente anterior ao próprio apóstolo.

No mundo cristão nascente, a transmissão oral dos ensinamentos de Jesus constituiu o principal meio de coesão e identidade. As comunidades cristãs primitivas, formadas por grupos variados em regiões como Palestina, Síria e Ásia Menor, desenvolveram mecanismos de preservação e circulação da tradição por meio de catequeses, pregações, hinos e fórmulas litúrgicas.

James D. G. Dunn defende que o Cristianismo Primitivo foi construído por uma “memória viva de Jesus”, mantida e performada dentro das comunidades. Para ele, os Evangelhos devem ser lidos como manifestações dessa memória social que respeita a tradição sem anulá-la com o rigor literal do documento escrito. Essa visão é reforçada por  Richard Bauckham, que argumenta que os relatos evangélicos derivam de testemunhos oculares cuidadosamente preservados, ancorados em práticas de controle comunitário que garantiam a confiabilidade da memória transmitida.

A contribuição de Kenneth E. Bailey é especialmente notável nesse campo. Com base em décadas de vivência e pesquisa no Oriente Médio, Bailey introduziu o conceito de “Tradição Oral Informal Controlada”, observando como, em comunidades tradicionais do Oriente Próximo, as histórias religiosas e culturais são repetidas em contextos sociais cotidianos, de forma espontânea, mas dentro de parâmetros estáveis e comunitariamente fiscalizados. Segundo Bailey, essa tradição permite variabilidade superficial (de estilo, vocabulário), mas conserva o núcleo essencial e as estruturas narrativas centrais intactas.

Ele argumenta que a mesma dinâmica operava nas primeiras comunidades cristãs: os relatos sobre Jesus eram repetidos e adaptados conforme o contexto e o ouvinte, mas havia uma consciência coletiva sobre o conteúdo essencial que não podia ser alterado. Isso funcionava como uma forma de “memória coletiva regulada”, muito distante da noção de distorção progressiva associada ao “telefone sem fio”.

4. Refutando o “Telefone sem Fio”: Consistência e Controle da Tradição Oral

A analogia moderna do “telefone sem fio” falha gravemente ao projetar no passado uma concepção moderna, ocidental e fragmentária da oralidade. Nas culturas antigas, e sobretudo no contexto do Cristianismo Primitivo, a oralidade era performática, pedagógica e cuidadosamente regulada pela comunidade.

Werner Kelber, ao analisar a estrutura dos Evangelhos, demonstrou como a transição da oralidade para a escrita não apagou os traços orais, mas os consolidou: as repetições, a narrativa em blocos e o estilo parabólico refletem práticas orais consolidadas. Essa estrutura é confirmada empiricamente pela análise de Bailey, ao demonstrar que o conteúdo religioso oral, quando partilhado em comunidades estáveis e ritualizadas, pode manter fidelidade surpreendente por gerações¹⁰.

A tradição cristã oral, portanto, não pode ser entendida como improvisação livre, mas como um sistema de tradição oral informal controlada, no qual os membros da comunidade, tanto ouvintes quanto narradores, muitos dos quais eram testemunhas oculares dos fatos relatados, funcionavam como guardiões da memória coletiva. Variações não eram apenas esperadas, mas normativas — desde que respeitassem os limites impostos pela memória compartilhada.

5. Conclusão

A tradição oral no Cristianismo Primitivo não foi um estágio rudimentar a ser superado pela escrita, mas o fundamento estruturante da fé e da identidade das primeiras comunidades. A crítica acadêmica contemporânea tem redescoberto o valor e a estabilidade da oralidade em contextos antigos, especialmente por meio das contribuições de Kenneth E. Bailey, cuja noção de tradição oral informal controlada oferece uma estrutura empírica para compreender como os Evangelhos puderam preservar com fidelidade os ensinamentos e a vida de Jesus.

Refutar a caricatura do “telefone sem fio” é mais do que corrigir um anacronismo — é resgatar o caráter profundamente comunitário, ritualizado e fiel da memória cristã primitiva. Assim, os Evangelhos não são documentos tardios de segunda mão, mas registros textuais de uma tradição viva, cultivada e cuidadosamente mantida por décadas em contextos de intensa oralidade.

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Referências e Notas

[1] ASSMANN, Jan. Cultural Memory and Early Civilization: Writing, Remembrance, and Political Imagination. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.

[2] HAVELOCK, Eric. Preface to Plato. Cambridge: Harvard University Press, 1963.

[3] ONG, Walter J. Orality and Literacy: The Technologizing Of The Word. London: Routledge, 1982.

[4] NEUSNER, Jacob. The Mishnah: A New Translation. New Haven: Yale University Press, 1986.

[5] JEREMIAS, Joachim. As Palavras Autênticas de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1983.

[6] DUNN, James D. G. Jesus Remembered: Christianity In the Making. Vol. 1. Grand Rapids: Eerdmans, 2003.

[7] BAUCKHAM, Richard. Jesus And The Eyewitnesses: the Gospels As Eyewitness Testimony. Grand Rapids: Eerdmans, 2006.

[8] BAILEY, Kenneth E. Jesus Through Middle Eastern Eyes: Cultural Studies In The Gospels. Downers Grove: IVP Academic, 2008.

[9] RUBIN, David C. Memory in Oral Traditions: The Cognitive Psychology Of Epic, Ballads, And Counting-Out Rhymes. New York: Oxford University Press, 1995.

[10] KELBER, Werner H. The Oral And The Written Gospel: The Hermenêutica Of Speaking And Writing In The Synoptic Tradition, Mark, Paul, and Q. Bloomington: Indiana University Press, 1997.

[11] BAILEY, Kenneth E. Informal Controlled Oral Tradition And the Synoptic Gospels. Themelios, v. 9, n. 3, p. 4–11, 1983. Disponível em: https://www.thegospelcoalition.org/themelios/article/informal-controlled-oral-tradition-and-the-synoptic-gospels/. Acesso em: 31 maio 2025.

DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Novo Testamento e Origens Cristãs pelo Seminário Bíblico de São Paulo/SP (FETSB); Mestre (M.A.) em Teologia e Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG). É teólogo, biblista, historiador e apologista cristão evangélico.

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