O Relato do Nascimento de Jesus em Mateus e Lucas: Construções Ficcionais ou Relatos Históricos?

   

"O Relato do Nascimento de Jesus em Mateus e Lucas: Construções Ficcionais ou Relatos Históricos?"


O nascimento de Jesus, conforme narrado nos evangelhos de Mateus (Mt 1–2) e Lucas (Lc 1–2), é tradicionalmente interpretado como um evento histórico com profundas implicações teológicas. No entanto, no campo da crítica bíblica contemporânea, os relatos têm sido objeto de intenso debate quanto à sua historicidade. Neste artigo examinaremos os elementos comuns aos dois evangelhos — nascimento virginal, nascimento em Belém, Maria como mãe, José como pai legal e a criação em Nazaré — argumentando que tais elementos possuem uma base histórica plausível, refletindo antigas tradições enraizadas em contextos históricos, ainda que teologicamente interpretadas.

1. Concordâncias entre Mateus e Lucas: coincidência literária ou tradição pré-evangélica?

Apesar das claras diferenças narrativas e teológicas entre Mateus e Lucas, há pontos de convergência significativos que sugerem uma tradição comum anterior à redação dos evangelhos. Ambos os evangelistas afirmam que:

Jesus nasceu de uma virgem (Mt 1.23; Lc 1.34-35);

O nascimento ocorreu em Belém da Judeia (Mt 2.1; Lc 2.4-7);

Maria é a mãe biológica e José o pai legal (Mt 1.16; Lc 3.23);

A família residia em Nazaré da Galileia (Mt 2.23; Lc 2.39).

Essas convergências não são facilmente explicáveis como pura ficção. A hipótese de dependência mútua ou de uso de uma fonte comum — ainda que hipotética — favorece a ideia de uma tradição oral ou escrita compartilhada¹. Além disso, a estrutura narrativa distinta e as ênfases diferentes entre os relatos (por exemplo, o foco de Mateus em José e de Lucas em Maria) reforçam a tese de que ambos trabalharam de forma independente com tradições já existentes².

2. O nascimento virginal: símbolo teológico ou memória histórica?

Entre os elementos mais criticados está o nascimento virginal de Jesus. Estudiosos como Marcus Borg e John Dominic Crossan veem o relato como um símbolo teológico tardio e não como um evento histórico³. Eles argumentam que o nascimento virginal reflete categorias mitológicas comuns no mundo greco-romano e judaico-helênico. No entanto, esta crítica subestima a especificidade do relato bíblico, que evita qualquer sugestão de sexualidade divina — algo presente nos mitos pagãos⁴.

Raymond Brown, embora cauteloso quanto à historicidade do nascimento virginal, admite que as diferenças entre os relatos não anulam a possibilidade de que se baseiem em tradições antigas e confiáveis⁵. Craig Keener argumenta que o nascimento virginal se ajusta ao contexto judaico do Segundo Templo, especialmente à ideia de que o Messias teria uma origem divina e pura⁶. A ausência de qualquer tentativa apologética explícita nos textos — por exemplo, justificar a ausência de paternidade biológica de José em um mundo onde a genealogia era fundamental — sugere autenticidade e uma memória preservada com fidelidade.

3. Belém e Nazaré: localizações contraditórias ou complementares?

Céticos como Bart Ehrman afirmam que a associação entre Belém e Jesus foi uma construção literária destinada a cumprir profecias messiânicas (Mq 5.2)⁷. No entanto, a combinação entre nascimento em Belém e criação em Nazaré não seria necessária do ponto de vista apologético, pois introduz uma tensão narrativa. Tal desconforto — longe de ser um artifício — indica que os autores estavam lidando com tradições históricas complexas, que não foram simplesmente inventadas para harmonizar Escrituras⁸.

Joel B. Green observa que a menção a Nazaré, uma aldeia insignificante e nunca mencionada no Antigo Testamento, dificilmente teria sido incluída se não correspondesse à realidade histórica⁹. A localização periférica de Nazaré, e o fato de o título “Jesus de Nazaré” ter sobrevivido nos relatos pós-pascais, reforça a autenticidade dessa memória.

4. A figura de Maria e José: biografia ou construção simbólica?

A crítica radical vê Maria e José como figuras idealizadas ou representações da “Nova Eva” e do “novo Jacó”. No entanto, tal leitura ignora o enraizamento cultural e legal dos relatos. José, por exemplo, é apresentado como o “pai legal” de Jesus, uma designação com forte ressonância judaica, pois determinava a herança davídica e os direitos legais do filho¹⁰. A menção a José como “justo” (Mt 1.19) e à sua obediência silenciosa sugerem mais um caráter histórico que literário. Além disso, a associação de Maria com a linhagem levítica por parte de Lucas (por meio da conexão com Isabel e Zacarias) indica um entrelaçamento de tradições familiares reais e antigas.

Conclusão

Portanto a análise crítica dos relatos de Mateus e Lucas indica que, apesar das diferenças e das intenções teológicas distintas, os elementos convergentes do nascimento de Jesus apontam para uma base histórica plausível. Longe de serem puramente construções ficcionais, os relatos refletem tradições antigas preservadas com fidelidade e moldadas à luz da fé cristã nascente. A historicidade do nascimento virginal, do local de nascimento em Belém, da maternidade de Maria, da paternidade legal de José e da criação em Nazaré se sustenta não apenas por sua coerência interna, mas pelo testemunho cruzado, independente e teologicamente motivado — sem ser teologicamente forçado. Ao invés de enfraquecerem a confiança nos relatos, as divergências e convergências entre Mateus e Lucas reforçam a plausibilidade histórica do núcleo essencial da narrativa. Trata-se, portanto, de histórias que não apenas significam, mas que também aconteceram.

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Referências e Notas de Rodapé

[1] BAUCKHAM, Richard. Jesus and the Eyewitnesses: The Gospels as Eyewitness Testimony. Grand Rapids: Eerdmans, 2006. p. 240-275.

[2] TUCKETT, Christopher. The Birth of Jesus: History or Myth? London: SPCK, 2000. p. 45-66.

[3] CROSSAN, John Dominic; BORG, Marcus J. The First Christmas: What the Gospels Really Teach About Jesus’s Birth. New York: HarperOne, 2007. p. 15-41.

[4] WRIGHT, N. T. The Resurrection of the Son of God. Minneapolis: Fortress Press, 2003. p. 384-392.

[5] BROWN, Raymond E. The Birth of the Messiah: A Commentary on the Infancy Narratives in Matthew and Luke. New York: Doubleday, 1993. p. 139-175.

[6] KEENER, Craig S. The Gospel of Matthew: A Socio-Rhetorical Commentary. Grand Rapids: Eerdmans, 2009. p. 91-103.

[7] EHRMAN, Bart D. Jesus: Apocalyptic Prophet of the New Millennium. New York: Oxford University Press, 1999. p. 209-217.

[8] BLOMBERG, Craig L. The Historical Reliability of the Gospels. 2. ed. Downers Grove: IVP Academic, 2007. p. 69-85.

[9] GREEN, Joel B. The Gospel of Luke. Grand Rapids: Eerdmans, 1997. p. 57-74.

[10] SCHNABEL, Eckhard J. Jesus in Jerusalem: The Last Days. Grand Rapids: Eerdmans, 2018. p. 60-67.






DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Novo Testamento e Origens Cristãs pelo Seminário Bíblico de São Paulo/SP (FETSB); Mestre (M.A.) em Teologia e Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG). É teólogo, biblista, historiador e apologista cristão evangélico.

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