A Evolução da Ciência Histórica como Disciplina Acadêmica

 



A História, enquanto prática intelectual, nasceu como esforço humano de compreender e narrar o passado. Desde os relatos fundacionais da Antiguidade até sua consolidação como disciplina universitária no século XIX, a História percorreu um longo caminho de transformações metodológicas e epistemológicas. Neste artigo temos por objetivo analisar a evolução da Ciência Histórica como disciplina acadêmica, destacando os principais momentos de sua constituição e os autores que contribuíram para seu estatuto científico.

1. Etimologia e Origem da Palavra

A palavra História tem origem no grego antigo: ἱστορία (historía), que significa “investigação”, “conhecimento adquirido pela investigação” ou “relato”. O termo vem de ἵστωρ (hístōr), que designava o “sábio”, “testemunha” ou “aquele que sabe por ter visto”. No latim, foi incorporado como historia, mantendo a ideia de “narrativa” ou “relato dos acontecimentos”. Inicialmente, o termo não estava restrito ao estudo do passado, mas abrangia qualquer forma de investigação e registro do conhecimento.

2. Da Narrativa a Ciência

2.1. As origens na Antiguidade Clássica

O ponto inaugural da historiografia é frequentemente associado a Heródoto, considerado o "pai da História" por sua obra Histórias, na qual buscava registrar os feitos humanos e explicar as causas das Guerras Médicas [1]. Seu método ainda estava impregnado de elementos míticos e anedóticos, mas já revelava uma preocupação com a investigação. Posteriormente, Tucídides ofereceu um salto qualitativo ao propor uma narrativa crítica e racional sobre a Guerra do Peloponeso. Diferente de Heródoto, rejeitou explicações divinas e buscou interpretar a política e a natureza humana como fatores centrais [2]. Essa mudança o consagrou como precursor da análise histórica voltada à causalidade racional. Autores romanos como Plutarco, Tito Lívio e Tácito mantiveram o legado da narrativa histórica, mas ainda a entendiam mais como literatura e moralização política do que como ciência autônoma [3]. A História, portanto, era concebida como uma arte de narrar, mais próxima da retórica do que da crítica documental.

3. A Idade Média: História como memória e crônica

Durante a Idade Média, a escrita da História esteve profundamente ligada à Igreja e às práticas monásticas. Anais e crônicas buscavam preservar a memória dos acontecimentos, organizando-os em ordem cronológica. Contudo, faltava um método crítico; a História tinha função moral, pedagógica e religiosa [4]. Esse caráter servia à legitimação do poder e à transmissão de valores cristãos. Se, por um lado, havia preservação da memória, por outro, não havia ainda uma concepção de História como disciplina crítica autônoma.

4. O Renascimento e o Iluminismo: o despertar da erudição histórica

Com o Renascimento, a redescoberta dos clássicos e a valorização do humanismo inauguraram um novo paradigma. Autores como Maquiavel, em História de Florença, passaram a articular uma reflexão política apoiada em exemplos históricos [5]. A História começava a servir de laboratório para a compreensão das ações humanas. No século XVIII, sob o Iluminismo, pensadores como Voltaire e Montesquieu empregaram a História como instrumento de análise filosófica e social [6]. Voltaire, em particular, propunha uma "História filosófica", menos interessada em reis e batalhas e mais nas culturas, costumes e ideias. Essa mudança preparou o terreno para uma concepção mais abrangente da história, mas ainda sem a sistematização crítica que caracterizaria a ciência histórica.

5. O século XIX: a institucionalização científica

O verdadeiro marco da História como ciência acadêmica se deu no século XIX, especialmente na Alemanha, com a obra e a influência de Leopold von Ranke. Considerado o pai do método histórico-científico, Ranke defendia que o historiador deveria narrar o passado "wie es eigentlich gewesen" (“tal como realmente aconteceu”)[7].

Sua ênfase estava na crítica documental e na análise rigorosa de fontes primárias, estabelecendo um padrão metodológico que diferenciava a História da mera literatura. A fundação da Universidade de Berlim e a criação de cátedras específicas consolidaram a História como disciplina autônoma dentro da academia [8]. A chamada Escola Metódica (Historicista) difundiu-se pela Europa, transformando a prática historiográfica em um empreendimento profissional, com métodos e regras próprios.

6. O Século XX: diversificação e renovação

O século XX trouxe uma ampliação dos horizontes historiográficos. A fundação da Escola dos Annales, por Marc Bloch e Lucien Febvre, representou uma ruptura com o modelo rankeano. Ao propor uma "história-problema", voltada às estruturas sociais, econômicas e mentais de longa duração, os Annales redefiniram a disciplina [9]. Posteriormente, Fernand Braudel desenvolveu a noção de longue durée (Longa Duração), aprofundando o olhar sobre as estruturas de tempo histórico [10]. Ao lado dessa tradição francesa, outras correntes se fortaleceram: História Social, História Cultural, História Oral, entre outras. Assim, a disciplina passou a dialogar intensamente com as Ciências Sociais, enriquecendo sua metodologia e seu escopo interpretativo.

Conclusão

Desse modo a evolução da Ciência Histórica como disciplina acadêmica revela um processo de progressiva autonomização intelectual e metodológica. Desde os relatos narrativos da Antiguidade, passando pelo uso moralizante da Idade Média, até o racionalismo iluminista, a História foi se transformando. Foi apenas no século XIX, com Leopold von Ranke e a institucionalização universitária, que a disciplina adquiriu o estatuto de ciência. O século XX, por sua vez, trouxe uma abertura plural que ampliou as fronteiras do conhecimento histórico, permitindo que a História se consolidasse como uma das principais ciências humanas. Assim, a História, como disciplina acadêmica, não é estática: resulta de contínua reflexão crítica, em diálogo constante com o presente e com as demandas intelectuais e sociais de cada época.

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Notas

[1] Heródoto. Histórias. Século V a.C.

[2] Tucídides. História da Guerra do Peloponeso. Século V a.C.

[3] Tácito. Anais; Tito Lívio. Ab urbe condita. Séculos I a.C.–I d.C.

[4] Le Goff, Jacques. História e Memória. 1988.

[5] Maquiavel, Nicolau. História de Florença. 1525.

[6] Voltaire. Ensaio sobre os Costumes e o Espírito das Nações (1756); Montesquieu. O Espírito das Leis (1748).

[7] Ranke, Leopold von. História dos Povos Romanos e Germânicos. 1824.

[8] Iggers, Georg. Historiography in the Twentieth Century. 1997.

[9] Bloch, Marc; Febvre, Lucien. Annales d’Histoire Économique et Sociale. 1929.

[10] Braudel, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II. 1949.




DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Estudos Bíblicos e Exegese pelo Seminário Bíblico de São Paulo/SP (FETSB); Mestre (M.A.) em Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro (STU). Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG).É historiador, biblista, teólogo e apologista cristão evangélico.

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