1. O Gênero Bioi na Antiguidade
Na cultura greco-romana, o gênero biográfico tinha como objetivo preservar a memória de personagens notáveis e oferecer exemplos morais. Obras de autores como Plutarco (Vidas Paralelas) e Suetônio (Vida dos Césares) mostram que o foco não era a cronologia exata, mas a caracterização do caráter e da missão da figura retratada. Assim também os Evangelhos: apresentam a vida de Jesus não como narrativa jornalística moderna, mas como uma biografia antiga que culmina em sua morte e ressurreição — eventos centrais que definem o sentido de sua vida. Richard Burridge, em seu estudo seminal, demonstrou que os Evangelhos se enquadram literariamente entre os bioi greco-romanos, embora com características próprias [1].
2. As influências da Bíblia Hebraica
Se por um lado os Evangelhos compartilham o formato do bioi helenístico, por outro lado sua matriz conceitual e fundamento é a Bíblia Hebraica. O Senhor Jesus é constantemente apresentado como o cumprimento das Escrituras (Mt 1:22–23; Lc 4:21).
Sua figura é interpretada à luz de Moisés, Elias e o Servo Sofredor (Is 53), refletindo padrões narrativos veterotestamentários.
A estrutura narrativa ecoa os relatos proféticos e sapiencais judaicos, combinando história e teologia como em Crônicas, Reis e Isaías. N. T. Wright argumenta que os Evangelhos reinterpretam a história de Israel, apresentando Jesus como aquele em quem se cumpre o drama bíblico [2].
3. Evidências Internas de Historicidade
Apesar do propósito teológico, os Evangelhos mostram sinais claros de historicidade interna:
Precisão geográfica: cidades, aldeias e costumes judaicos correspondem ao contexto do século I (p. ex., Cafarnaum, Betsaida, Betfagé).
Nomeação de personagens: nomes comuns como Maria, José, Tiago e Judas coincidem com os nomes atestados em ossuários e inscrições do período [3].
Detalhes secundários: menções aparentemente banais (como a almofada no barco em Mc 4:38) apontam para tradições enraizadas na memória oral.
Esses elementos fortalecem a leitura dos Evangelhos como testemunhos históricos moldados pela fé.
4. Evidências Externas de Historicidade
A credibilidade histórica dos Evangelhos é reforçada pelo diálogo com outras fontes:
Josefo menciona Jesus, Tiago e João Batista (Antiguidades 18.3.3; 20.9.1)[4].
Tácito confirma que Cristo foi executado sob Pôncio Pilatos no governo de Tibério (Anais 15.44)[5].
A Arqueologia confirma detalhes como a existência do tanque de Betesda (Jo 5:2) e inscrições de Pôncio Pilatos e Caifás.
Craig Keener observa que a convergência de fontes independentes “reforça o caráter histórico básico da narrativa evangélica”[6].
5. Propósito Teológico dos Evangelhos
É inegável que os Evangelhos não são neutros. João declara explicitamente: “Estas coisas foram escritas para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus” (Jo 20:31). Assim, sua intenção não é apenas informar, mas formar. No entanto, como afirmam Samuel Byrskog e outros, a historiografia antiga nunca foi “neutra”: mesmo Tucídides escrevia com intenções políticas e morais [7]. Nesse sentido, os Evangelhos se enquadram no padrão da Historiografia Antiga: relatos históricos com propósito interpretativo.
Conclusão
Os Evangelhos devem ser compreendidos como bioi helenísticos adaptados ao horizonte da Bíblia Hebraica. Eles unem:
A forma biográfica greco-romana, que transmite a memória de um mestre notável;
O conteúdo enraizado nas Escrituras judaicas, que lê Jesus como cumprimento redentido da história de Israel;
O propósito teológico, que não exclui, mas se apoia na realidade histórica.
Portanto, os Evangelhos são, de fato, documentos históricos com função teológica, apresentando Jesus de Nazaré como personagem real da história, cuja vida e morte foram interpretadas à luz da fé.
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Referências
[1] BURRIDGE, Richard A. What Are the Gospels? A Comparison with Graeco-Roman Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.
[2] WRIGHT, N. T. Jesus and the Victory of God. Minneapolis: Fortress Press, 1996.
[3] ILAN, Tal. Lexicon of Jewish Names in Late Antiquity: Part I Palestine 330 BCE–200 CE. Tübingen: Mohr Siebeck, 2002.
[4] JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas. Tradução de William Whiston. Livro 18.3.3; 20.9.1.
[5] TÁCITO. Anais. Tradução de A. J. Church e W. J. Brodribb. Livro 15.44.
[6] KEENER, Craig S. The Historical Jesus of the Gospels. Grand Rapids: Eerdmans, 2009.
[7] BYRSKOG, Samuel. Story as History – History as Story: The Gospel Tradition in the Context of Ancient Oral History. Leiden: Brill, 2000.